Relação de Lula com evangélicos tem duas dimensões

NAS ENTRELINHAS

Presidente não consegue atrair o eleitorado pentecostal, embora tenha apoio de setores evangélicos. O fosso está nas questões do aborto e das relações homoafetivas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é católico romano, sempre foi ligado aos padres adeptos da teoria da libertação, sobretudo ao frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto. Na década de 1970, Frei Betto organizou Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na Arquidiocese de Vitória (Espírito Santo); depois foi para São Paulo, trabalhar na Pastoral Operária do ABC. Foi quando se aproximou de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que havia liderado as grandes greves operárias do ABC em 1978.

A chegada de Frei Beto a São Bernardo coincide com a fundação do PT, que se tornaria o leito natural para os militantes das comunidades eclesiais de base, que estavam sendo dissolvidas por ordem do Papa João Paulo II. Frei Betto era amigo de dona Marisa, falecida esposa de Lula, e chegou a assessorá-lo no Palácio do Planalto, no primeiro mandato. Essa relação, que se mantém até hoje, está longe de favorecer uma aproximação de Lula com os evangélicos.

Há razões doutrinárias para isso, por causa da Reforma Protestante, liderada por Martinho Lutero, por volta de 1520. A crise com o Papa Leão X resultou em três igrejas protestantes: Luterana (1530), Anglicana (1534), liderada pelo rei Henrique VII da Inglaterra, e Calvinista, de Ítalo Calvino (1540). Em 1542, na reunião do Concílio de Trento, o Papa Paulo III adotou medidas para reformar a igreja e estancar a sangria, mas isso não impediu que os evangélicos se multiplicassem. Há mais de 11 mil denominações pentecostais ou carismáticas no mundo.

O Brasil tem 55 denominações evangélicas, com aproximadamente 65 milhões de seguidores, 70% dos quais pentecostais. As 10 maiores são: Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (6 milhões de seguidores), Congregação Cristã no Brasil (4,5 milhões), Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil (4 milhões), Igreja Universal do Reino de Deus (1,8 milhão), Convenção Batista Brasileira (1,8 milhão), Igreja do Evangelho Quadrangular (1,8 milhão), Igreja Adventista do Sétimo Dia (1,7 milhão), Igreja Internacional da Graça de Deus (1,1 milhão), Igreja Pentecostal Deus é Amor (845 mil) e Igreja Presbiteriana do Brasil (702 mil membros).

Nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras é possível identificar uma família evangélica por simples observação visual. Suas casas são bem cuidadas, mesmo que menores e com aparência mais pobre. Da porta para dentro, são famílias estruturadas, cuja rotina de trabalho, estudo e lazer convive com disciplina, resiliência, austeridade e ordem. A funcionalidade da presença pentecostal nas periferias não pode ser ignorada. Onde não há política pública, a desestruturação da família de baixa renda é quase um beco sem saída.

Bispos e pastores

O eixo da atuação dos evangélicos nas comunidades pobres é a preservação da família unicelular patriarcal e a defesa dos seus costumes tradicionais, o que leva à “calcificação” de uma cultura conservadora, facilmente capturada por narrativas políticas autoritárias e reacionárias. Há conservadores na Igreja Católica, mas a doutrina é menos severa e sua presença nas periferias quase inexiste, suas igrejas estão fora dessas comunidades e há poucos padres nas pastorais, devido à crise de vocação provocada pelo celibato.

A narrativa de Bolsonaro — “Deus, pátria, família e liberdade” — capturou o apoio da maioria dos evangélicos, que continua ao seu lado (eram maioria no ato da Avenida Paulista de domingo passado). Essa relação foi tecida no convívio com a bancada evangélica, no chamado baixo clero da Câmara dos Deputados. Lula não consegue atrair o eleitorado pentecostal, embora tenha apoio dos setores evangélicos menos conservadores. É chamado de comunista pelos pastores, mas o fosso intransponível está nas questões do aborto e das relações homoafetivas.

Nesta terça-feira, a proposta de emenda à Constituição (PEC) que amplia a imunidade tributária de entidades religiosas e igrejas de qualquer religião, de autoria do deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), líder da Igreja Universal, foi aprovada por uma comissão especial da Câmara. O texto estendia a possibilidade de redução de impostos a entidades sindicais, instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativo, mas o deputado Dr. Fernando Máximo (União Brasil-RO), relator da proposta, limitou a medida às entidades religiosas, num acordo com os ministérios da Fazenda e do Planejamento, e com a Casa Civil.

As igrejas são isentas do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), do Imposto de Renda (IR), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). A proposta amplia a isenção para aquisições de itens que são “necessários” para construir o patrimônio e à prestação de serviços das entidades religiosas, uma renúncia fiscal estimada em R$ 1 bilhão.

Há disputas entre as denominações pentecostais, cujas ambições econômicas e políticas aparecem claramente no Congresso e nas relações com o governo. Lula acena com mais privilégios para atrair apoio da bancada evangélica, mas essa relação tem duas dimensões: a dos bispos, na cúpula das igrejas, com as quais o governo negocia, e a dos pastores, nas suas comunidades, que perdem direitos trabalhistas com a nova legislação. (Correio Braziliense – 28/02/2024)

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