NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Os políticos são movidos por seus objetivos, em alguns casos inconfessáveis; a burocracia zela pela legitimidade dos meios que utilizam. Quando existe uma não conformidade, sempre fica um rastro
Há muito a política deixou de ser monopólio dos políticos, militares e diplomatas, ainda que continuem sendo grandes protagonistas da história. Às vezes, as crises políticas ganham rumos imprevistos em razão de personagens improváveis: o irmão, a ex-mulher, o motorista, o caseiro, a secretária, quando surgem de forma inesperada no enredo, como fatos até bizarros. É o caso dessa história do Rolex que o ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, tenente coronel Mauro Barbosa Cid, tentou vender no mercado internacional de joias usadas, porém, sem certificado de procedência, cuja principal testemunha é uma ex-secretária.
Vazou um documento supostamente encaminhado à CPMI dos atos golpistas e de caráter sigiloso, cuja existência foi revelada por Camila Bomfim, da TV Globo. Ao rastrear os acessos aos arquivos da comissão, técnicos do Senado constataram que nenhum dos 12 integrantes da comissão autorizados examinou o arquivo do qual o documento fazia parte. Suspeita-se que alguém ligado a Mauro Cid, em busca de proteção, possa ter interesse no vazamento, mas não se sabe até agora quem seria.
A principal testemunha do caso do Rolex é a ex-secretária-executiva do Gabinete Adjunto de Informações do Gabinete Pessoal da Presidência Maria Farani. Após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ex-assessora foi trabalhar no gabinete da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que é integrante titular da CPI do 8 de janeiro e foi ministra de Bolsonaro. Não confundir com a polêmica embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, que chefiou a delegação permanente do Brasil em Genebra e foi cônsul-geral em Nova York, durante o governo Bolsonaro.
Mauro Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, teria tentado vender um relógio da marca Rolex recebido pelo ex-presidente durante uma viagem oficial à Arábia Saudita, no dia 30 de outubro de 2019. O rei Salman bin Abduld-Aziz doou ao então chefe do Executivo um conjunto de objetos valiosos, entre os quais o Rolex. Como se sabe, a família real saudita gosta de dar presentes de luxo a mandatários de outros países. E Bolsonaro considerava esses presentes uma propriedade pessoal, como no famoso caso do colar apreendido pela Receita Federal na alfândega de Guarulhos, cujo portador era o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque. Outros presentes dos sauditas, Mauro Cid tentou liberar as joias insistentemente, antes do ex-presidente da República deixar o cargo.
O Rolex foi protocolado no Gabinete Adjunto de Documentação Histórica do gabinete da Presidência da República como “acervo privado”, em 11 de novembro de 2019. Nos registros da burocracia do Palácio do Planalto, consta uma liberação do relógio no dia 6 de junho de 2022, retirado por outro militar, o tenente Osmar Crivelatti, que fazia parte da equipe de Mauro Cid na Presidência. Quando Bolsonaro deixou o cargo, Crivelatti foi escolhido para acompanhá-lo, como um dos assessores que todo ex-presidente da República tem o direito de manter.
Noite londrina
No mesmo dia, Mauro Cid trocou mensagens com um possível comprador do relógio, que pretendia vender por US$ 60 mil, o equivalente a R$ 291 mil. As mensagens foram apagadas da caixa postal, mas uma delas foi localizada na lixeira. Em inglês, o interessado queria saber a procedência do relógio.
“Olá Mauro, obrigada pelo interesse em vender o seu Rolex. Tentei falar com você por telefone mas não consegui. Pode por favor me falar se você tem o certificado de garantia original do relógio?” “Quanto você espera receber por essa peça? O mercado para Rolex usados está em baixa, especialmente para relógios cravejados de platina e diamante (já que o valor é tão alto). Só queria me certificar de que estamos na mesma linha antes de fazermos muita pesquisa. Espero ouvir notícias suas.”
Maria Farani confirmou em nota à imprensa que procurou um possível comprador a pedido de Mauro Cid, para quem repassou as mensagens.
Apesar do estilo despojado, Bolsonaro gostava das mordomias das viagens ao exterior. Em Londres, ele e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro se hospedavam na própria embaixada do Brasil, na Cockspur Street, números 14 a 16, perto da Trafalgar Square. É um dos endereços mais suntuosos do chamado “Circuito Elizabeth Arden”, ao lado das embaixadas de Roma, Paris e Washington. Sinônimo de elegância e status, Arden foi uma famosa fabricante de cosméticos, que inventou o batom vermelho Montezuma Rede para as mulheres que serviram na II Guerra Mundial.
Da sacada da embaixada de Londres, Bolsonaro discursou para seus apoiadores, numa cena constrangedora, porque fora um ato ilegal de campanha eleitoral, quando o objetivos da viagem era participar do enterro da rainha Elizabeth II.
O caso do Rolex é um exemplo da tensa a relação entre a ética da responsabilidade e a ética das convicções. Os políticos são movidos por seus objetivos, em alguns casos inconfessáveis; a burocracia zela pela legitimidade dos meios que utilizam. Quando existe uma não conformidade, sempre fica um rastro. Começam a chegar muitos documentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), principalmente e-mail e mensagens. Bolsonaro pode até ser condenado e preso por causa de histórias como essa. Onde está o Rolex? (Correio Braziliense – 06/08/2023)