NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Reposicionamento de Washington foi o maior obstáculo diplomático enfrentado por Bolsonaro. E pode igualmente neutralizar a política externa de Lula
Um pressuposto de políticas externas bem-sucedidas é o relativo consenso nacional em torno delas. O ex-presidente Jair Bolsonaro caiu num profundo isolamento internacional por causa do seu alinhamento com os líderes de extrema-direita na política mundial, sem que houvesse massa crítica nas elites brasileiras para esse posicionamento. Ainda que os interesses do agronegócio o obrigassem a um giro de reaproximação com a China, em guerra comercial com os Estados Unidos, o ponto de inflexão de sua política externa foi a eleição do presidente Joe Biden. Com a derrota de Donald Trump, Bolsonaro ficou sem seu principal aliado. O isolamento internacional foi uma das causas de sua derrota e da frustração de suas intenções golpistas.
Na campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula das Silva teve no presidente Joe Biden o seu principal aliado na política internacional, uma variável importante para a garantia de sua posse. Embora existam contradições entre os militares brasileiros e os Estados Unidos, nossas Forças Armadas mantêm estreita colaboração com suas congêneres dos Estados Unidos, Inglaterra e França. A cooperação militar com a Rússia e a China não tem grande expressão, ao contrário do que acontece com a Venezuela, que acumula farto material bélico de origem russa, chinesa e iraniana.
Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o presidente da Venezuela, Nícolas Maduro, com tapete vermelho, nos dois sentidos. Hiperinflação, emigração em massa e um governo paralelo não foram suficientes para apear Maduro do poder. O presidente venezuelano sobreviveu à crise de 2019 por duas razões: seus generais convenceram Bolsonaro a não participar de uma aventura militar, em apoio à aventada intervenção norte-americana no país vizinho; e o presidente russo Vladimir Putin equipou as Forças Armadas venezuelanas com armamentos que desequilibraram a correlação estratégico-militar regional.
A Rússia vendeu mais de US$ 11,4 bilhões em equipamento militar para a Venezuela nos últimos 20 anos, incluindo caças, helicópteros de ataque e transporte, defesa aérea e plataformas navais, tanques, veículos blindados de transporte de pessoal (APC), artilharia autopropulsada e mísseis terra-ar. Pululam instrutores militares cubanos. A China se concentrou no apoio político e econômico fornecido à Venezuela, incluindo cooperação estreita em energia, indústria, saúde, finanças e comércio. Entretanto, desde 1999, o 76º Grupo do Exército do Exército de Libertação do Povo Chinês (PLA) realiza treinamento conjunto com as Forças Especiais venezuelanas.
Linha divisória
Lula classificou seu encontro com Maduro como um “momento histórico”. Tem razão quando argumenta que é inconcebível não manter relações com um país vizinho, com o qual tem uma fronteira de 2.220km e muitos interesses econômicos. É um esforço para recuperar mercado para a indústria brasileira, ocupado pelos chineses. Mas classificar como preconceito as críticas ao regime venezuelano é um erro político. “Acho que cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa, para que possa efetivamente fazer pessoas mudarem de opinião. […] É preciso que você construa a sua narrativa, e eu acho que por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”, disse Lula. O problema da Venezuela não é a narrativa; são as violações de direitos humanos e a falta de eleições livres e limpas.
Ontem, a propósito da coluna publicada no domingo, o professor Darc Costa, presidente das Câmaras de Comércio Brasil-Venezuela e da Federação das Câmaras de Comércio da América do Sul, argumentou que a política externa brasileira deve projetar o que chamou de Ocidente Profundo. “Não do Ocidente vindo da barbárie, que habitava além das muralhas de Adriano, somos filhos da Ibéria, a região mais Ocidental do Império Romano”. Segundo ele, “Ocidente coletivo”, com a inclusão do Japão, Taiwan e Coreia do Sul, é um conceito muito amplo, que inclui qualquer aliança. “Qual o nosso lugar? Este enigma está longe de ser decifrado e qualquer alinhamento agora é precipitado. Celso Amorim e o Itamaraty sabem disso”, argumenta Costa.
Feita a ressalva, volto à questão central. O nosso neorrealismo diplomático como doutrina, partindo de nossa posição geopolítica na América do Sul e no chamado Sul Astral, tem seu valor, mas acontece que houve uma mudança na política mundial que não pode ser ignorada. Desde a posse em Washington, em 20 de janeiro de 2021, a política externa de Biden retoma as alianças estratégicas dos Estados Unidos que haviam sido implodidas por Donald Trump (2017-2021). Seu objetivo é recolocar o país na “posição de liderança confiante” das demais democracias do mundo contemporâneo, em contraposição à Rússia e à China.
Esse reposicionamento de Washington foi o maior obstáculo diplomático enfrentado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. E pode igualmente neutralizar a política externa de Lula. Uma aproximação exagerada com a Rússia e a China não tem a mesma sustentação interna do regime de Maduro. Velha estratégia de Zbigniew Brzezinski, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) até a fronteira com a Rússia, acompanhando a ampliação da União Europeia, está praticamente consumada com a Guerra da Ucrânia. A Europa é a porta de entrada dos Estados Unidos na Eurásia, e a Otan, o instrumento militar para isso. A Rússia é seu maior obstáculo. A propósito, a expansão da OTAN para o Atlântico Sul, desde a Guerra das Malvinas, seria mera formalidade. (Correio Braziliense – 30/05/2023)