A esquerda latino-americana ainda deve passar por uma virada reformista tão audaciosa quanto a de Allende e sua via pacífica
Que lições tirar dos acontecimentos no Chile, cujo eleitorado conferiu a condução do processo constituinte ao setor mais à direita do espectro político, setor para o qual, curiosamente, há poucos reparos a fazer à Constituição herdada de Pinochet? Intrinsecamente paradoxal, a decisão dos eleitores tem o poder de alertar para fatos novos e outros mais distantes, bem como para um personagem exemplar que as coisas chilenas sempre acabam por trazer à tona.
Fica arquivada, por ora, a ideia do presidente Gabriel Boric pela qual o Chile, berço do neoliberalismo latino-americano, também haveria de ser o seu túmulo. Não bastou para tanto o espírito de rebeldia, variado e confuso, que tomou forma com o estallido de 2019. A rebeldia de massas teve até uma sequência promissora ao se tornar o motor de uma primeira convenção constituinte e, também, da eleição do próprio Boric. Contudo, o projeto constitucional saído de tal convenção, com a pretensão de assaltar os céus e “refundar” o país, não passou pelo crivo dos cidadãos, com o rechazo de setembro do ano passado. E hoje parece fruto de imaginação enquadrar a vitória de Boric em 2021 como o acontecimento inicial, e irreversível, de uma segunda “onda vermelha” na América Latina.
Por mais exageradas que tenham sido as expectativas em torno do presidente – eleito sem maioria congressual, num contexto em que só caudilhos ousam denunciar, com propósitos subversivos, o Parlamento “resistente às reformas” –, o fato é que Boric trouxe novidades significativas. Mas, antes, nosso personagem exemplar.
Há pouco mais de cinco décadas uma figura da política chilena apontou, ou começou a apontar, um rumo diferente para a esquerda latino-americana. Salvador Allende ainda se movia segundo as coordenadas ditadas pela “transição ao socialismo”. Ao fim e ao cabo, pois, propunha uma ruptura, a passagem para um novo modelo de sociedade. Mas Allende, para toda uma geração frustrada com desvios e desmandos das sociedades pós-revolucionárias, tornou-se um emblema positivo por falar em via pacífica, em mudança social apoiada no voto livre, e não na força ilusória das armas. Uma perspectiva brutalmente interrompida há 50 anos, exatamente, por Augusto Pinochet, no ato de nascimento daquele neoliberalismo puro e duro que, mesmo nos ciclos produtivos dos governos de Concertación, ainda iria condicionar a reconstrução de um Estado social mais abrangente.
Difícil dizer até que ponto o espírito de Allende esteve presente no relativamente rápido amadurecimento de Boric – algo que não ocorreu na mesma medida entre seus apoiadores de uma esquerda ruidosa, fragmentada e “pós-moderna”. O presidente teve nos ombros a tarefa de superar fraturas geracionais, incorporar a experiência de socialistas e outros aliados moderados, bem como, afinal, tentar levar representantes de uma miríade de formações esquerdistas, treinadas em movimentos de protesto, a se comportarem como quadros de governo. É de supor que, realizada só parcialmente ou não realizada de todo, a tarefa agora se complique com a necessidade de achar pontos comuns com a direita tradicional e romper ou dificultar o bloco entre esta direita e a extrema-direita no conselho constituinte.
Além disso, pelo resto do mandato, o presidente Boric terá de pôr à prova a capacidade de redimensionar o próprio programa original, capitaneando uma retirada ordenada. Esta, a face interna do dilema. Há também uma face externa, agora menos evidente em razão da premência das questões imediatas de governo. Acostumamo-nos nos últimos tempos a ouvir de Boric um sinal dissonante na esquerda latino-americana em relação aos direitos humanos. Este sinal, de imenso simbolismo, singulariza o mandatário chileno entre seus pares, muitas vezes dispostos a empunhar a bandeira dos direitos em alguns casos e a abandoná-la em outros. Ou a manifestar mal dissimulada simpatia por governantes, como Putin, em guerra aberta contra as sociedades “ocidentais”.
Boric inseriu sua identidade socialista num quadro de respeito aos valores liberal-democráticos. Não contradiz essa posição o fato de também ter de enfrentar com firmeza a questão dos imigrados produzidos em série pelo despotismo político e pela ruína econômica do regime de Chávez/Maduro. Refugiados são percebidos – equivocadamente – como fator de insegurança pública e aumento de criminalidade. E a percepção de insegurança prepara o terreno para a afirmação do receituário repressivo da extrema-direita, em desafio aos direitos humanos mais básicos.
Em termos genéricos e sem descer às necessárias particularizações, é possível afirmar que a esquerda latino-americana ainda deve passar por uma virada reformista tão audaciosa quanto a de Allende e sua via pacífica. Viciados em homens fortes, que se postam como “comandantes eternos” ou, no mínimo, líderes que se veem como indispensáveis, chegamos a vislumbrar em Boric um ensaio de liderança regional capaz de se afirmar diversamente. Que a dura derrota não nos prive dessa esperança e de outras no mesmo sentido. (O Estado de S. Paulo – 21/05/2023)
Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci no Brasil