Fernando Gabeira: O naufrágio da sensatez

O caminho certo seria destinar o porta-aviões São Paulo a um estaleiro especial para que fosse descontaminado

No passado, alguém chamou Brasília de Ilha da Fantasia. Para mim, em certos momentos, parece a caverna de Platão, onde observamos sombras se movendo na parede, como o senador Do Val, e as confundindo com o mundo exterior.

Estava na caverna de Platão quando a Marinha afundou o porta-aviões São Paulo, carregado de amianto e outras substâncias venenosas, no litoral brasileiro.

O amianto é uma fibra natural altamente prejudicial à saúde humana. Durante anos, lutei pela sua proibição no Congresso, orientado pela doutora Fernanda Giannasi. Trouxemos especialistas e, sobretudo, pessoas cujo pulmão foi devastado pela fibra.

Foi por meio dela que segui os passos do São Paulo, desde o momento em que foi vendido por R$ 12 milhões para uma empresa turca, no ano passado. Comprado aos franceses, ele virou sucata e como sucata ambulante seria mandado para os turcos, configurando algo que poderia colar no Brasil a acusação de racismo ambiental. Não se pode exportar contaminação para os outros.

Os turcos se rebelaram, fizeram manifestações e impediram que o porta-aviões atracasse por lá. “Não queremos importar lixo”, diziam.

O São Paulo teve de fazer então seu longo caminho de volta. Ninguém queria deixar que ficasse em suas águas, os ingleses o barraram em sua passagem pelo Estreito de Gibraltar.

Lembro-me de ter dado uma rápida notícia. Mas o tema não empolgava. O porta-aviões veio de novo para o Brasil e vagou pela litoral de Pernambuco, sem autorização para atracar.

O caminho certo seria destiná-lo a um estaleiro especial para que fosse descontaminado. Não era possível, no meu entender, afundá-lo sem ferir a Constituição. Há um artigo no capítulo do meio ambiente que exige relatório de impacto ambiental para atividades potencialmente poluidoras. Infelizmente, a Marinha decidiu completar o trabalho equivocado do governo Bolsonaro e o afundou.

Encontrei acidentalmente o novo ministro da Marinha no aeroporto. Ele me deu a impressão de que se preocupa com a proteção dos oceanos e talvez saiba que sua saúde é importante nas mudanças climáticas.

Nossa querida Marina deveria ter ido a Lula e mostrado que o afundamento poderia marcar uma contradição na política ambiental anunciada pelo governo. Talvez o trabalho duro de proteger a floresta e reformular o ministério não tenha permitido que pudesse agir com mais energia.

Leio que os russos, quem diria, lamentaram que o antigo porta-aviões não pudesse ter sido usado para testar um dos seus foguetes destinados a destruir navios. Seria pior ainda.

Na verdade, nove toneladas e meia de amianto estão no fundo do mar. A saga desse mineral não acabou. O Supremo ainda julgará sua proibição definitiva. No momento, em decisão monocrática, o ministro Alexandre de Moraes permite o funcionamento da mina de Goiás para a exportação do amianto. Isso nos expõe de novo a denúncias de racismo ambiental. Proibimos internamente e liberamos a exportação.

Moraes teve papel importante na defesa da democracia. No Brasil, somos assim: calça de veludo ou bunda de fora. Ele não é perfeito, nem infalível, e, nesse caso, está pisando na bola.

A principal culpa no caso do porta-aviões é do governo Bolsonaro, de seu Ibama falsificado. Mas não se pode afirmar que terminou um governo do mal e começou um governo do bem. Terminou um governo com viés autoritário, pró-ditadura, e começou um governo de frente democrática que, às vezes, precisa ser também criticado. Não foi uma decisão apenas da Marinha, mas de outros setores do governo, como a AGU, que acabaram se sobrepondo à visao técnica dos especialistas em meio ambiente.

Só nos resta agora monitorar a região do naufrágio com alguma regularidade para saber os efeitos reais de toda essa carga de um porta-aviões que participou de vários testes atômicos da França. Material radioativo é apenas uma hipótese, mas amianto e venenosas bifenilas policloradas (PCBs) são agora uma realidade em nossas águas. (O Globo – 13/02/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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