Precisamos recusar a banalidade do mal e despertar contra todos os genocídios brasileiros
Apesar das fotos, depoimentos, comprovações e discursos, ainda há quem conteste o holocausto cometido pelos nazistas. Da mesma forma, ainda há quem recuse o uso da palavra genocida para definir o que foi feito contra o povo ianomâmi. Mas não há como negar os sinais de crime contra a humanidade: decisões políticas tomadas, justificações ideológicas e a banalidade do mal que acoberta o crime, graças ao comportamento social brasileiro.
Tanto quanto o antisemitismo usava o argumento de uma hipotética ameaça à soberania alemã por parte dos judeus, no Brasil alguns manifestam necessidade de eliminar o povo ianomâmi para evitar a ameaça de criação de uma nação independente. Esses discursos serviram de base para justificar envenenamento da água com mercúrio, negar vacina e expulsar ianomâmis das terras onde vivem integrados à natureza desde muito antes de o Brasil surgir. Por 523 anos, o Brasil praticou o genocídio com o nome de etnocídio.
Ao longo de 350 anos, trouxemos 5 milhões de africanos para servirem como escravos na economia exportadora e nos serviços à parcela branca e rica. Sob a banalidade do mal, com o nome de escravidão, aceitamos o genocídio secular, motivado por ganância econômica, racismo e arrogância europeia. Há 135 anos, para continuar a exploração em nome do progresso e do bem-estar de uma minoria privilegiada, proclamamos a Lei Áurea, mas mantivemos os descendentes sociais dos escravos sem escolas. Mudamos o nome de genocídio para analfabetismo. Soltamos, mas não libertamos, tiramos as algemas, mas não ensinamos a usar o mapa do caminho adiante. Em 1889, proclamamos a República, mas a “elite” manteve o genocídio da escravidão moderna, que não precisa trazer acorrentados desde a África, basta deixá-los nascer no Brasil e viverem sem educação.
Não se sabe o número de escravos nascidos no Brasil, nem daqueles que nasceram republicanos e morreram sem aprender a ler, vítimas do analfabetismo, o banalizado mal brasileiro. Não são assassinados em massa, mas não têm emprego, não têm renda, sobrevivem nos guetos da desigualdade social. No século 21, quando não se consegue negar escola à população urbanizada, mantém a última trincheira da escravidão: o genocídio sob o nome de desigualdade escolar. A banalização da maldade de um sistema com escola senzala para muitos e escola casa grande para poucos, mantendo o genocídio da apartação social.
Os alemães enriqueciam desapropriando os judeus mortos pelo gás Zyclon B, usado nos monstruosos crematórios de seus campos de concentração. A parcela rica do Brasil fica mais rica graças ao mercúrio usado contra os ianomâmis, e também ao crematório de cérebros de crianças pobres nas escolas senzala, concentrando os bons empregos e renda para os que têm acesso às escolas casa grande. A banalização do mal tolera a secular história dos genocídios brasileiros: etnocídio, escravismo, analfabetismo, desigualdade escolar.
Os genocídios têm nomes diferentes, provocam mortes em números diferentes, sob formas diferentes, mas têm as mesmas causas — arrogância da civilização ocidental, ganância de lucro dos investidores, voracidade de consumo pelos ricos, racismo e supremacia dos brancos sobre as outras raças — e, a maior de todas, a indiferença dos que assistem e se beneficiam de seus resultados, por Zyklon B, por mercúrio ou pela corrupção nas prioridades. Os alemães foram coniventes com o genocídio de judeus, os brasileiros são coniventes com os genocídios dos índios, dos escravos, dos analfabetos e dos sem-escola de qualidade. Todos coniventes, mas alguns culpados e diretamente responsáveis.
É preciso dar nomes aos genocídios e apontar os nomes dos genocidas. Na Alemanha, os responsáveis pelos crimes dos nazistas se suicidaram ou foram levados ao Tribunal de Nuremberg, onde foram condenados à morte ou a longos períodos na prisão. Precisamos recusar a banalidade do mal e despertar contra todos os genocídios brasileiros, escondidos sob outros nomes, cometidos por todos que sonham com o progresso que elimina índios, usa escravos ou concentra educação para manter a desigualdade social. Mas também levarmos aos tribunais aqueles que no Brasil demonstraram, por palavras ou atos, responsabilidade com o específico genocídio contra o povo ianomâmi. (Correio Braziliense – 07/02/2023)
Critovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília