Marcus André Melo: Antipetismo e antibolsonarismo

A polarização converte a oposição de governo potencial em ameaça existencial

Em coluna nesta Folha (“Polarização à brasileira, Política), Demétrio Magnoli aponta uma contradição na minha afirmação de que a hiperfragmentação e o baixíssimo partidarismo político no Brasil têm criado um partidarismo negativo assimétrico (envolvendo apenas o PT). Argumenta que “no Brasil, polarização é termo ilusório: uma forma de descrever (e ocultar) a dinâmica do antipetismo”.

Acredito que a incompreensão se deva à ideia de partidarismo assimétrico. A evidência é clara: 83% dos entrevistados no Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) 2018 não tinham preferência por um partido. O escasso partidarismo vem de longe: Loewenstein, autor de “Hitler’s Germany” (1939) e “Brazil under Vargas” (1942), negava que o Estado Novo fosse nazista ou fascista, pois Vargas não contava com um partido.

A polarização atual envolve o bolsonarismo, que não é um partido. Bolsonaro “alugou” um micropartido para se eleger e permaneceu, de 2019 a 2021, sem afiliação. Como falar de partidarismo negativo no seu caso? Lula é muito mais que o petismo, mas o PT é o único partido com alguma identificação partidária no eleitorado (embora, devido à hiperfragmentação, detenha meros 11% das cadeiras na Câmara). No bolsonarismo inexiste ancoragem partidária.

Daí falarmos em assimetria: o antibolsonarismo se opõe ao antipetismo, não ao antilulismo. Não há “polarização à brasileira”; mas ela não é ilusória. Sua singularidade entre nós deve-se à assimetria partidária. Há um outro debate associado à rubrica polarização assimétrica nos EUA, em torno do partido no qual a radicalização seria maior. No Brasil ele nem sequer faria sentido, dada a fluidez partidária.

Magnoli acrescenta: “o antipetismo é álibi conveniente para evitar a crítica política”. Trata-se aqui do antipetismo como estratégia discursiva. Sim, ele buscou blindar e desqualificar toda tentativa de responsabilização do governo por parte da oposição quanto à economia e à corrupção exposta.

E mais: o discurso de demonização da oposição sob o PT está longe de ser especificidade brasileira: elites sórdidas e povo virtuoso é mantra populista. O discurso de Chávez é canônico (“repolarización – nosostros, los patriotas; y ellos, los traidores”) e está presente também no bolsonarismo.

Essa virulência contra a oposição sugere um paralelo com o padrão nas democracias avançadas no século 19. A democracia só se estabiliza quando o sistema partidário se consolidou, permitindo alternância no poder. O que pressupõe, como mostrou Hofstadter, a aceitação da oposição comprometida com o sistema constitucional (consubstanciada na expressão “Her Majesty most loyal opposition”); como “governo-em-potência”, não ameaça existencial. (Folha de S. Paulo – 23/05/2022)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

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