A autocracia informacional de Putin na encruzilhada
Daniel Treisman caracterizou a Rússia como uma Autocracia Informacional em The new autocracy: information, and policy in Putin’s Russia (2018). O controle da informação e a manipulação da opinião pública através de fake news cumprem naquele país o papel da repressão brutal em autocracias tradicionais. Na Rússia, é “melhor mentir que matar”, afirma, em seu novo livro Spin Dictators, “ditadores marqueteiros”, em tradução livre, coautorado com Sergei Guriev.
Para Treisman, a invasão da Ucrânia é parte integral da forte reação ao colapso do processo vertiginoso de modernização a que o país assistiu, entre 1999 e 2010, e que coincidiu com o boom de commodities.
Entre 1999 e 2011, o PIB per capita quase dobrou: foi de U$13 mil para U$24 mil. A taxa de crescimento anual do valor real de salários e aposentadorias cresceu a extraordinários 11%. Tudo isso após dois governos de Putin, que se torna muito popular.
Esta mudança, argumenta, afetou também valores e normas. A percentagem de pessoas que preferiam um sistema político democrático passou de 45% para 64%, entre 1995 e 2006, alcançando mais de 2/3 da população (68%) em 2011. O apoio à “democracia no estilo ocidental” subiu de 15% para 30%. 60% da população via positivamente os EUA e 70% a União Europeia.
Mas o boom chegou ao fim e os ganhos de bem-estar despencaram. A popularidade de Putin idem. Como resposta o governo montou uma “máquina informacional”. A legitimidade produzida pela prosperidade foi substituída por orgulho nacional, valores tradicionais e novas ameaças externas, alimentadas pela máquina.
“A classe média na Rússia são todos que viajam. Agora não há mais classe média.” A metáfora instigante é de Adam Przeworski, para captar a insatisfação doméstica generalizada na Rússia após as sanções. Mas não só: famílias perdem membros na guerra ou temem fazê-lo. Oligarcas sofrem perdas patrimoniais e de acesso a suas redes fora da Rússia.
Privação econômica generalizada combinada com conflitos no interior da elite que controla o poder, argumenta, são preditores importantes de processos de mudança de regime, que pode malograr ou não.
O diagnóstico é otimista. Ele se torna mais verossímil na medida em que o conflito se estende no tempo.
Ao contrário das expectativas iniciais, a invasão não foi fácil nem tampouco produziu queda de governo em Kiev. No início da invasão, Gehlbach previa —em caso de guerra difícil— o recrudescimento da censura e da propaganda; seguida de intensificação da repressão, o que estamos observando.
Sim, a atual generalização da repressão pode ter consequências não antecipadas, inclusive o próprio fim do regime. (Folha de S. Paulo – 04/04/2022)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)