É essencial questionar a legalidade do uso de informações privadas pelo Estado
A capacidade estatal de coletar, armazenar e processar dados sensíveis vem sendo incrementada à medida que novas tecnologias são desenvolvidas. Se, de um lado, soluções tecnológicas têm sido fundamentais para o aperfeiçoamento das políticas públicas, de outro, a coleta e o monitoramento de dados por parte de governos também são relevantes para a vigilância estatal e têm sido amplamente realizados nas atividades de inteligência voltadas à segurança pública e nacional —nem sempre dentro da lei.
Em uma democracia é essencial questionar os limites e a legalidade do uso de informações privadas de cidadãos, em especial diante da rápida expansão do poder do Estado por meio do avanço tecnológico.
Recentemente, o consórcio de jornalistas Forbidden Stories e a Anistia Internacional denunciaram a utilização do programa Pegasus por inúmeros governos para espionar opositores e jornalistas independentes, entre outros alvos. A denúncia inclui dez Estados que supostamente fizeram uso do software para controlar e vigiar milhares de alvos, dentro os quais estão México, Hungria, Índia, Marrocos e Arábia Saudita. O Brasil não está nessa lista, mas por muito pouco.
Em maio deste ano, uma licitação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, no valor de R$ 25,4 milhões, despertou preocupação ao incluir o NSO Group, dono do Pegasus. O edital estabelece como objeto do pregão a aquisição de uma “solução de inteligência em fontes abertas, mídias sociais, Deep e Dark Web”. Dentre as funções da ferramenta a ser contratada está a coleta de um número considerável de informações de cidadãos, com potencial de instaurar um amplo e generalizado monitoramento sobre a sociedade.
Fato é que o avanço da vigilância estatal para fins de controle e supervisão coincide com um movimento mais amplo que estamos vivenciando: o fechamento do espaço cívico e a erosão democrática. Uma das estratégias para limitar a atuação da sociedade civil é justamente a vigilância estatal para monitorar e, eventualmente, perseguir e punir críticos ao governo. Acadêmicos, ativistas, cientistas, lideranças cívicas e políticas, e também servidores públicos têm sido alvos preferenciais.
Apesar de compartilhar da lógica do inimigo interno que fundamentou as investigações e prisões realizadas com base na Lei de Segurança Nacional, o vigilantismo atua de maneira mais silenciosa, a partir de instrumentos de intimidação menos diretos. O dossiê da Secretaria de Operações Especiais do Ministério da Justiça contra policiais e professores antifascistas e a própria abertura de licitação para a contratação de “aparelho espião” são alguns casos recentes representativos do avanço do autoritarismo digital no Brasil.
É preciso romper com a devassa da vida privada de cidadãos feita por governos populistas e autoritários, de forma ilegal, para fins de controle e repressão social, sob a justificativa de proteger a segurança pública e nacional. Os casos envolvendo o Pegasus —definido pelo colunista Ronaldo Lemos como uma arma tecnológica com alta capacidade de dano e sofisticação— nos alertam para um fenômeno global.
É fundamental repensar os instrumentos que temos disponíveis para reagir ao avanço do autoritarismo tecnológico. Práticas abusivas de vigilância sobre a população violam direitos fundamentais e corroem democracias por dentro. Nesse sentido, qual é o equilíbrio entre segurança, democracia e privacidade? Responder a essa pergunta não é nada trivial, mas esse debate nunca foi mais crucial. (Folha de S. Paulo – 28/07/2021)
Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”