Luiz Carlos Azedo: Eles eram justos e puros

Faltava tudo em Moscou e os mineiros de Donetsk, na Ucrânia, estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro, onde surgiu o movimento stakhanovista. A vaia em Gorbachëv na Praça Vermelha, em pleno desfile de Primeiro de Maio, fora o sinal de que a Revolução de Outubro havia se esgotado.

Voltava de Moscou para Buenos Aires lendo As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), num longo e enfumaçado voo da Aeroflot lotado de pescadores, que bebiam desesperadamente e fumavam papiroskas como caiporas. A frota soviética do Pacífico Sul era formada por verdadeiras fábricas flutuantes de pescado enlatado.

“Você vai morrer!”, repetiu o rei. “Aliás, agora você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo.” Dubane, o médico suspeito de espionar, fora condenado à morte, mas desafiou o rei a ler um livro que faria sua cabeça falar após ter sido decapitada.

“O rei obedeceu, molhando os dedos com a própria saliva para separar as páginas do livro… E o veneno foi penetrando em seu corpo. Viram-no ensaiar um passo, vacilar e cair”. A cabeça de Dubane, exangue num prato, então, compreendeu que a droga havia produzido seus efeitos e recitou estes versos:

Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação

Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem pensará em censurar o mundo
Por os ter tratado assim.

A poesia foi um raio na minha cabeça, parecia que o avião ia cair: Somos nós, os comunistas, pensei. Eu voltava atordoado pelo que vira e ouvira em Moscou e Leningrado (hoje novamente chamada pelo seu nome de batismo, São Petersburgo). Era o mês de maio de 1990, Mikhail Gorbachëv ainda gozava de enorme prestígio mundial, mas a União Soviética já estava se desmanchando. A viagem fora um choque terrível, que eu ainda não conseguia digerir. Sentia-me o próprio homem das cavernas da fábula de Platão, quando estava cego pela luz e não sabia se voltava para a escuridão, onde já não enxergava mais, ou permaneceria definitivamente à superfície.

A vaia na Praça Vermelha

Havia viajado para uma reunião de representantes dos jornais comunistas de todo o mundo em Moscou, no auge da perestroika. A Voz da Unidade havia sido convidada, apesar de ser um pequeno semanário, insignificante até, diante do L’Humanité, do PCF, fundado por Jean Jaurès, o líder socialista francês assassinado ao tentar evitar a Primeira Guerra Mundial, ou o l’Unità, fundado por Antônio Gramsci, do PCI, que morreu nas masmorras do fascismo italiano de Mussolini. Modesto ainda mais diante do poderio do Pravda, cujo novo diretor, Ivan Frolov, era a estrela do encontro. Ele havia substituído Victor Afanasiev, que comandou o jornal de 1976 a 1989, quando entrou em rota de colisão com Gorbachëv.

Havia uma esquizofrenia no cerimonial do evento, que seguia a hierarquia do partido para o tratamento dado aos convidados. Como eu era membro da Comissão Executiva e do secretariado do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), deram-me importância maior do que aquela que o jornalista realmente merecia. Sabia disso porque, no ano anterior, havia feito a cobertura da XIX Conferência Política do PCUS, na qual Gorbachëv derrotara seus adversários para poder avançar com a perestroika.

O tratamento era outro, o apartamento no qual me alojaram era o mesmo no qual se hospedara Giocondo Dias, pela última vez, segundo me disse a tradutora, Natália Kffeinia, que era dublê de informante da KGB, como quase todos os tradutores do PCUS. A lógica soviética era de que a hierarquia do partido se sobrepunha à do Estado. Desse modo, nessa viagem, estava sendo tratado como se fosse ministro no Brasil, onde o partido estava isolado e fraco, mas tinha um candidato à Presidência da República, o líder do PCB na Câmara, Roberto Freire.

Minha primeira grande surpresa na viagem foi saber que faltava tudo em Moscou e que os mineiros de Donetsk, na Ucrânia (que hoje se declara uma república independente e quer ser anexada à Rússia), estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro. Foi nela que surgiu o movimento stakhanovista, símbolo da produtividade do trabalho na Era Stálin. Aliás, havia greves por todas as regiões da União Soviética.

Anatole Petrovitch Evchenco, o membro do Comitê Central do PCUS encarregado das relações com o Brasil, me contou que fora obrigado por Gorbachëv a negociar o fim de uma paralisação de mineiros nos Urais, onde fica a Rússia profunda. “Depois de fechar o acordo, eles exigiram que distribuíssemos o estoque de conhaque Napoleon que havia no armazém do partido para voltar ao trabalho. Veja que absurdo, os dirigentes da mina tinham do bom e do melhor e os mineiros passavam necessidades com suas famílias”, disse-me. Anatole hoje é um dos donos de uma fábrica de helicópteros, cujas ações “herdou” do pai.

O meu maior espanto aconteceu nas comemorações do Primeiro de Maio, na Praça Vermelha, cujo desfile assistiria ao lado de outros comunistas do mundo inteiro. Jamais imaginei que Gorbachëv, que arrancara aplausos de populares em todos os lugares onde esteve, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos, fosse receber uma bruta vaia na festa mais importante para os trabalhadores de todo o mundo. No alto de um palanque ao lado do mausoléu de Lênin, os líderes comunistas assistiam ao desfile de pioneiros, estudantes e trabalhadores quando surgiram os protestos. Gorbachëv retirou-se do desfile sob apupos, após ver os manifestantes trazendo faixas nas quais se lia: “Abaixo Gorbachëv! Abaixo o Socialismo e o Império Vermelho fascista”.

O líder soviético não era um ator como Ronald Reagan, o presidente dos Estados Unidos, mas era um governante carismático, que irradiava simpatia e estava sempre sorridente. Não parecia sinistro como Stálin, não era grosseiro como Kruschev, ou senil como Brejnev. Muito menos temido, como Andropov ou, simplesmente, apático como fora Chernenko. Assim eram seus antecessores na secretaria-geral do PCUS. Encarnava o sonho de democratização do “socialismo real” para a opinião pública mundial e, creio, para a maioria dos comunistas. Simbolizava o fim da guerra fria, pois o acordo de desarmamento nuclear lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz. Representava o sonho de renovação do movimento comunista.

No dia seguinte ao desfile, numa reunião com diretores dos jornais, os discursos dos funcionários do partido eram de duras críticas à oposição, cujos líderes foram chamados de sujos, vagabundos e provocadores. Mas a grande preocupação era com a repercussão da vaia nas demais cidades soviéticas e o destaque dado ao fato pela mídia mundial, relatara-me Oleg Tsukanov, professor de Economia na Escola de Quadros do PCUS, muito querido entre os brasileiros. Ele acabou por morrer voltando ao Brasil, onde procurou trabalho depois que os comunistas deixaram o poder (morava em Brasília e dava aulas na Universidade Católica).

Ao longo da Rua Arbat, a rua de pedestre mais famosa da capital, não se falava de outra coisa, a não ser na vaia do Primeiro de Maio, para espanto de outro camarada, Hudson Correia de Lacerda, que era locutor da Rádio Central de Moscou e me levara para ver a situação na cidade sem os filtros do aparatchik. Ele falava russo sem sotaque e vivia como um autêntico moscovita. A agitação era impressionante. Havia de tudo, de comícios relâmpagos a protestos individuais e silenciosos. Aquilo me lembrava o centro do Rio de Janeiro entre a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves, já nos estertores do regime militar.

A crise de desabastecimento

Numa conversa após o Primeiro de Maio, o economista Ygor Gaidar, um dos editores de Economia do Pravda, que mais tarde viria ser o ministro da Fazenda de Boris Yeltsin, fez-me um balanço da situação. Ele criticava o que chamou de grande equívoco de Gorbachëv na condução do país: entregar o comando da economia aos engenheiros que dirigiam os grandes combinados industriais.

“Eles cortaram 10% das importações de bens de consumo e compraram máquinas e equipamentos que vão ficar por aí enferrujando”, disparou. Segundo ele, a reforma deveria começar pelas privatizações de serviços e manufaturas, além da liberação da pequena produção mercantil e do comércio em geral para os empreendedores familiares, e pela abertura da economia para a entrada das montadoras de automóveis e fábricas de eletroeletrônicos das multinacionais, como a China acabou fazendo depois.

A “aceleração”, como Gorbachëv batizara inicialmente a sua reforma econômica, estava sendo um fracasso. De imediato, pensei na polêmica do Bukharin com Stálin. O líder russo, assassinado nos processos de Moscou, defendia um modelo de “acumulação socialista” que se baseava na produção capitalista no campo e no barateamento da produção da indústria ligeira para formação da poupança necessária ao financiamento da industrialização pesada.

Diante da necessidade de armar o país para enfrentar a guerra iminente com a Alemanha, porém, Stálin deu um basta a isso, com as “coletivizações forçadas” no campo, que expropriou a pequena burguesia rural. O movimento stakhanovista era uma espécie de trabalho compulsório, mascarado de emulação socialista. Também rasgou a Constituição de 1935, que transformaria a URSS num Estado de direito socialista. Bukharin foi processado e fuzilado como traidor, depois de obrigado a assinar a própria confissão, em meio à onda de assassinatos do grande expurgo promovido pelos chamados “Processos de Moscou”.

A ascensão de Stálin se deu sobre os cadáveres de milhares de quadros bolcheviques. Começou após a morte de Sverdlov, vítima de tifo, quando Lênin perdeu o principal organizador do partido bolchevique, que foi substituído por uma comissão na qual Stálin despontaria. Mas a liderança absoluta viria mesmo após a morte de Lênin, com o assassinato de Kirov, o secretário do comitê de Leningrado, que era o mais popular dos bolcheviques. O crime, mais tarde atribuído ao próprio Stálin, deu início à onda de expurgos que consolidaria o poder do ditador soviético.

Voltemos, porém, à crise do modelo soviético. No verão russo de 1982, durante o Congresso do Konsomol, no Kremlin, Leonid Brejnev quase caiu ao discursar. O velho líder soviético já estava meio gagá, mas gozava de uma conjuntura econômica favorável: havia abundância de frutas tropicais nas ruas de Moscou e as lojas do GUM (Glavny Universalny Magazin), na Praça Vermelha, estavam abarrotadas de produtos importados, dos perfumes franceses aos sapatos italianos. A URSS faturava com a elevação do preço do petróleo e do gás.

Na crise do petróleo, que a liderança soviética erroneamente interpretou como uma nova crise geral do capitalismo, Brejnev havia lançado a consigna “Estado de todo o povo, rumo ao comunismo”. Os americanos haviam sido derrotados no Vietnã e foram corridos do Irã; os comunistas estavam no poder nas colônias portuguesas. A América Latina fervia com a revolução sandinista na Nicarágua e a ofensiva guerrilheira dos comunistas em El Salvador. Até que a invasão do Líbano por Israel mostrou que o outro lado ainda era capaz de arreganhar os dentes.

Vinte anos depois, porém, a conta do atraso havia chegado. O velho problema detectado por Bukharin, e que fora atalhado por Stálin, estava estrangulando a economia soviética: a produção do campo não era suficiente para alimentar o povo e a indústria de bens de consumo, padecia de baixa produtividade e péssima qualidade. Enquanto isso, o mundo capitalista ingressara na terceira revolução industrial, com o toyotismo, os sistemas de produção flexíveis, os novos materiais e supercondutores, a microeletrônica e a telemática. Os grandes combinados russos, engessados pelos planos quinquenais, já tinham ficado para trás.

Nas ruas de Moscou, as “bichas” se formavam do nada. O sujeito chegava com uma sacola e entrava na fila, esperava alguém mais chegar e pedia para guardar o seu lugar. Só então verificava o que estava sendo vendido. Se achasse que era algo que iria faltar, comprava o que os rubros permitissem e ele conseguisse carregar, para estocar ou fazer câmbio negro. O povo aproveitava para falar mal do Gorbachëv e dos comunistas. O abastecimento se tornara completamente caótico.

O despejo do Smolni

No dia seguinte, me despacharam para Leningrado. Fui recebido por um membro da direção do partido no berço da Revolução de 1917, que neste 7 de novembro de 2017 completará 100 anos anos. Com muita gentileza, mas meio sem jeito, disse-me que o secretário-geral do partido não poderia me receber: “Você não sabe da maior, acabamos de ser despejados do Smolni; está a maior confusão por aqui”.

O Instituto Smolni, antigo convento da aristocracia russa, foi a primeira sede do governo soviético, o local onde se realizou o II Congresso dos Sovietes. Nele, os comunistas tomaram o poder e Lênin anunciou as primeiras medidas da revolução: proposta de paz imediata a todas as nações beligerantes; entrega da terra aos camponeses; controle operário de toda a produção e distribuição de bens e o controle estatal das instituições bancárias. Em seguida, outras medidas de larga repercussão foram sendo tomadas, tais como a abolição de todas as desigualdades de classe, sexo, nacionalidade ou credo religioso, nacionalização dos bancos e das estradas de ferro, entre outras. Foram dez dias que abalaram o mundo, como disse John Reed em seu livro famoso.

Com a transferência da sede do governo para Moscou, os bolcheviques se instalaram no local e nunca mais saíram. Ocorre que Gorbachëv havia aprovado um decreto apartando os bens do partido dos bens do Estado e o prefeito de Leningrado, Gavril Popov, aliado de Yeltsin, rompeu com o PCUS e mandou a milícia pôr os dirigentes e funcionários do partido na rua. Não havia nada que legitimasse a posse do imóvel, nem mesmo uma conta de luz ou água paga pelos comunistas desde a tomada do prédio, manu militari, pelos soldados e marinheiros que garantiram o poder dos comunistas em 1917.

Diante do constrangimento, minha viagem a Leningrado virou um grande passeio turístico. Fundada por Pedro, o Grande, às margens do rio Neva, São Petersburgo é a primeira grande cidade planejada do mundo e a quarta da Europa em população, atrás apenas de Londres, Paris e Moscou. Fui ao Hermitage, à Catedral de Pedro e Paulo, conheci o legendário cruzador Aurora e me encantei com o balé Kirov. Caminhei pela famosa Avenida Nevski até a famosa Estação Finlândia, pensando em Maiakovski, na Flauta Vertebrada:

Eu medito.
Os pensamentos, coágulos de sangue,
enfermos, ardendo,
porejam de meu crânio.
Eu,
criador de tudo que é festa,
não tenho com quem ir à festa.
Agora mesmo irei atirar-me
de cabeça
no empedrado da avenida Nevski.

A desintegração da URSS

De volta a Moscou, tinha um encontro marcado com o brasilianista russo A. Karavaiev, autor do livro Brasil, passado e presente do capitalismo periférico, que havia me chamado a atenção porque defendia uma tese heterodoxa diante dos cânones da III Internacional: a de que o nosso país poderia se tornar desenvolvido por uma via não-socialista. No dogma comunista, nenhum país dependente teria chance de chegar lá por outra via que não fosse a tomada do poder numa revolução nacional-libertadora, seguida da construção do socialismo.

“Não vou conversar com você sobre o Brasil, que é um grande país e hoje tem menos problemas que o nosso”, disse-me Karavaiev. Tenso, o que ele queria falar era outra coisa: “a União Soviética está à beira da dissolução”. Fiquei perplexo: “Como assim, vocês não resolveram a questão das nacionalidades?” A resposta dele foi nua e crua. “Com o regime de partido único, a União Soviética não sobreviverá. Os comunistas das repúblicas serão os primeiros a declarar independência para permanecer no poder”, disparou. Não deu outra.

No dia 8 de dezembro de 1991, Yeltsin, sem consultar Gorbachëv, comunicaria ao presidente Bush, o pai, que acabara de extinguir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Para Eric Hobsbawn, a queda da URSS e do socialismo no Leste Europeu selou o fim do próprio século XX. Ninguém esperava isso, mas também não foi um passe de mágica, foi o esgotamento de um modelo de sociedade. O colapso político se deu quando os militares sequestraram Gorbachëv e tentaram um golpe de Estado, entre 19 e 21 de agosto daquele ano. Era outra pedra cantada, na qual não quis acreditar.

A conspiração dos militares

O primeiro cara a me falar do golpe foi o jornalista brasileiro José Arbex, então correspondente da Folha de S. Paulo, em Moscou. Eu o havia convidado para almoçar no novo hotel do partido, que o povo chamava de Spaciba Bolshoi, considerado então o mais luxuoso de Moscou e destinado aos dirigentes do PCUS e não aos empresários e turistas que chegam à capital soviética. Era um hotel cinco estrelas como outro qualquer, mas comparado ao Hotel Moscou, da época de Stálin, ou ao velho Spaciba nos fundos do Teatro Bolshoi, o hotel do partido desde a década de 1920, aquilo era um escândalo. Tanto que o secretário geral Yuri Andropov, que foi o grande padrinho de Gorbachëv, recusou-se a inaugurá-lo.

Arbex entrou no hotel observando tudo, pois nunca antes havia posto os pés por lá. Mas conhecia a fama do lugar e fez uma gozação ao ver o buffet farto do hotel, enquanto tudo faltava para o povo lá fora. “Quanta mordomia, camarada Azedo!”. Foi uma longa e divertida conversa. Não acreditei no que ele me falou sobre os militares: “Azedo, você prestou atenção no pronunciamento do ministro da Defesa no Dia da Vitória?”. O desfile do Exército Vermelho, no dia 9 de maio, é o ponto alto das comemorações da Grande Guerra Patriótica, como os russos chamam ainda hoje a II Guerra Mundial. Eu prestara atenção, fora um discurso duro contra a oposição, o imperialismo e em defesa do socialismo, mas dentro da velha retórica soviética. Não interpretei aquilo como a senha para um golpe de Estado.

“Você está com teorias conspiratórias, esses generais são heróis de guerra e velhos bolcheviques, vão fazer o que o partido decidir”, disse-lhe. Arbex riu e rebateu: “Esse é o problema, o partido está contra o Gorbachëv”. É óbvio que eu não acreditei no que ele estava falando. Tudo indicava que o golpe realmente estava em marcha, mas eu me recusava a encarar a realidade.

Mais tarde, já no Brasil, durante um encontro de partidos de esquerda com Fidel Castro em São Paulo, da qual participei ao lado do então secretário-geral do PCB, Salomão Malina, o líder cubano disse com todas as letras que estava contra o Gorbachëv e que tinha informações de que era crescente a resistência do partido, inclusive dos militares, à perestroika — que ele também considerava uma traição ao socialismo. O dirigente cubano sabia do que estava falando.

O equilíbrio estratégico-militar

A Revolução Russa de 1917 foi a maior tentativa já feita de superação do capitalismo, depois da brevíssima Comuna de Paris de 1871, que inspirou Lênin. Na verdade, tomou o rumo dado pelos bolcheviques em consequência da Primeira Guerra Mundial, que interrompeu a primeira experiência de governo socialdemocrata do mundo, na Alemanha. A II Internacional, que reunia num só movimento os principais líderes operários e a intelectualidade marxista do começo do século passado, implodiu.

A Socialdemocracia Alemã, ao aprovar os créditos de guerra, “traiu” o restante do movimento socialista. O Partido Trabalhista britânico, obviam ente, engajou-se no esforço de guerra da Inglaterra. Na França, Jaurès, o grande líder socialista que lutava pela manutenção da paz, fora assassinado. Lênin, então, opôs-se ferozmente à participação da Rússia na guerra, A velha consigna bolchevique lançada por ocasião da Guerra da Criméia estava mais válida do que nunca: “Pão, paz e terra!”.

Foi nessa esquina da História que o chamado “socialismo real” se impôs como alternativa para a construção de uma nova sociedade, em contraposição à experiência fascista em diversos países, cuja ascensão começou com a chegada de Mussolini ao poder na Itália. Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a expansão comunista veio no rastro dos tanques soviéticos. O “socialismo real” no Leste Europeu funcionou como uma via de industrialização tardia. Só não se contava com o sucesso do Plano Marshall, que possibilitou a retomada da experiência socialdemocrata na Europa Ocidental, com seu Estado de Bem-estar Social, e com a guerra-fria, que submeteu a economia soviética a um esforço permanente de guerra com a chamada “corrida armamentista”.

Na doutrina comunista, o equilíbrio estratégico militar entre a URSS e os EUA era a chave do avanço revolucionário no resto do mundo. Permitiria neutralizar o imperialismo ianque e avançar nas lutas de libertação nacional, como aconteceu na China, em Cuba e no Vietnã. Do ponto de vista do Ocidente, a visão não era muito diferente, apenas tinha sinal trocado. No histórico encontro de julho de 1945, em Potsdam, nos arredores de Berlim, Josef Stálin, Harry Truman e Winston Churchill, respectivos líderes da URSS, dos EUA e da Inglaterra, traçaram o destino do mundo – especialmente a partilha da Alemanha, que havia se rendido em maio, e o desfecho da guerra contra os japoneses, que ainda não haviam se rendido.

Truman comentou com Stálin que os EUA estavam de posse de uma nova arma, com “inusitado poder destrutivo”. Como bom jogador, o líder soviético agradeceu a informação e desejou que os americanos usassem o novo artefato com “sucesso contra o Japão”. Um mês depois, as primeiras bombas atômicas foram lançadas em Hiroshima e Nagasaki.

A decisão de lançar as bombas sobre o Japão não teve como objetivo apenas abreviar o desfecho da Segunda Guerra. Era o começo de um novo tipo de tensão mundial: a Europa seria dividida em duas zonas de influência: a Ocidental, capitalista, sob atração dos EUA, e a Oriental, comunista, ajudada pela URSS. A fronteira entre “as duas Europas” seria a própria Alemanha, também dividida. O que realmente estava em jogo era a hegemonia mundial. Os EUA adotaram uma estratégia de domínio indireto; o intervencionismo militar da URSS, ao contrário do que aparentava, porém, seria muito mais frágil.

A debacle do socialismo real

Os comunistas chegaram ao poder na Polônia, Hungria, Bulgária, Romênia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental com o apoio dos tanques soviéticos, diante de uma economia em frangalhos e elites locais que na maioria dos casos havia colaborado com o nazismo. O preço a ser pago pela igualdade econômica era a perda da liberdade política. Foi assim na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968 – a famosa Primavera de Praga. A antiga Iugoslávia e a China eram casos à parte.

Na Europa Ocidental, Berlim Ocidental era uma vitrine reluzente, uma ilha capitalista encravada na República Democrática Alemã. Quando percebeu que a tal “vitrine” exercia uma enorme atração sobre os berlinenses, que preferiam trabalhar no lado ocidental da cidade, a administração do setor oriental viu-se obrigada a erguer, em 1961, o Muro de Berlim.

Como se sabe, entre a década de 1930 e o início da década de 1960, a consolidação da URSS como potência industrial foi feita com base num “crescimento extensivo”, com muita mão de obra barata e abundância de recursos naturais. Na década de 1970, no Ocidente, fábricas projetadas para produzir em série determinados produtos passaram a ser substituídas por plantas industriais automatizadas e muito mais flexíveis, capazes de se adaptar às variações de demanda no mercado consumidor.

A linha de montagem criada por Henry Ford já não já dava conta do recado. Mas fora a fonte de inspiração de Lênin para conceber todo o arcabouço do chamado “socialismo real”, do modelo de partido único, da estrutura do Estado soviético e dos sindicatos como correias de transmissão do partido. O socialismo tornara-se anacrônico.

Ao mesmo tempo, havia uma batalha ideológica entre o chamado “americanismo” do Ocidente e a “proletarização” do Leste Europeu. Essa batalha ganhou uma nova dimensão quando o cardeal polonês Carol Wojtyla foi eleito papa. Como João Paulo II, ele desempenharia um papel importante na desestabilização dos regimes socialistas do Leste Europeu, a começar pela Polônia. Um pouco da crise da URSS se deve também a isso, por causa da independência da Estônia, Letônia e Lituânia, republicas de maioria católica da URSS que haviam sido anexadas por Stálin.

Em agosto de 1980, no estaleiro Lenin, na cidade de Gdansk, o eletricista Lech Walesa anunciou a criação do Solidariedade – o primeiro sindicato independente de um país comunista. O dogma de que a vanguarda da classe operária eram os comunistas veio abaixo no Leste Europeu. O partido deixara de ser “a consciência do proletariado”, se tornara uma espécie de nova classe dominante, uma burocracia autoritária e corrompida, encastelada no poder.

Num dos intervalos do encontro promovido pelo Pravda, fui procurado por um dos diretores da agência de notícias Tass, uma das maiores do mundo. Ele era casado com a filha do ministro da Pesca e queria um contato com um grande estaleiro do Brasil para iniciar um grande negócio: criar uma joint-venture para prestar serviços à frota de pesqueiros russa do Atlântico Sul, que passariam a ser reabastecidos e sofreriam reparos em Niterói. Ou seja, a plutocracia que enriqueceria com as privatizaçoes de Yeltsin já estava em posição de combate.

O presidente americano na época, Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, diante da crise, perceberam a oportunidade de uma grande ofensiva neoliberal. O comunismo já era um animal ferido de morte. Encararam como missão resgatar a reputação do capitalismo no Ocidente e afastar de vez o fantasma comunista que rondava o mundo desde o Manifesto de Marx e Engels de 1848. Gorbachëv, que chegou ao poder em 1985, era uma resposta a essa ofensiva, mas já era tarde demais. A reestruturação econômica (perestroika) e a transparência política (glasnost) não teriam o mesmo sucesso que os acordos de desarmamento que o fizeram um notável líder mundial, até hoje respeitado no Ocidente.

Gorbachëv surpreendia o mundo com discursos liberalizantes e democráticos, mas a pressão interna no Leste Europeu crescia. A explosão começou em 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa. Em junho, depois que o líder soviético deu a entender ao novo primeiro-ministro da Hungria que reconhecia que a revolta de 1956 tinha começado em virtude da insatisfação do povo, mais de 200 mil húngaros sentiram-se à vontade para ir à cerimônia do “novo funeral” de Imre Nagy, que liderara a revolta e fora executado por ordem de Kruschev. Três meses depois, com a retirada da cerca de arame farpado ao longo da fronteira entre a Hungria e a Áustria, milhares de alemães orientais cruzaram o território húngaro para o Ocidente.

Na Polônia, o sindicato Solidariedade ganhou as eleições; em Berlim Oriental, no dia 9 de novembro, ou seja há 25 anos a completar neste domingo, o mundo inteiro assistiu pela TV a derrubada do Muro de Berlim. Na Bulgária, Todor Zhivkov, no poder desde 1954, anunciou seu afastamento. Sete dias depois, na Tchecoslováquia um governo de coalizão liderado por Alexandre Dubcek, líder da Primavera de Praga em 1968, tomou o poder dos comunistas pelos braços do povo. Na Romênia, o líder Nicolau Ceausescu, foi destituído e enforcado ao lado de sua mulher, depois de uma revolta popular que terminou com o seu julgamento sumário.

Finalmente, Gorbachëv foi vítima de sequestro, numa tentativa deu golpe militar. A resistência democrática foi liderada por Boris Yeltsin – o mesmo homem que, no dia 8 de dezembro de 1991, decretaria o fim da URSS. No Natal daquele ano, o pai da perestroika passou a Yeltsin os códigos necessários para disparar um ataque nuclear. E assinou o decreto oficial do fim da URSS, no dia 31 de dezembro de 1991.

A travessia do deserto

Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o vizir diz para Sherazade o seguinte:

“Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século.”

Aparentemente, esses foram os erros de Gorbachëv, mas isso não passa de uma simplificação de tudo o que ocorreu. Velhos camaradas culpam o líder soviético, mas há muitas interpretações sobre o que houve de fato. Entre os comunistas, como sempre, as divergências são profundas.

Os trotskistas veem a restauração capitalista no Leste Europeu como a confirmação das teses de Leon Trotsky, o líder bolchevique assassinado por ordem de Stálin durante o exílio no México e que acaba de ter sua memória resgatada pelo fabuloso romance O homem que amava os cachorros, do escritor cubano Leonardo Padura.

Os maoístas, mais pragmáticos, corroboram a velha tese chinesa de que Kruschov havia traído a revolução ao denunciar o culto á personalidade e os crimes de Stálin. Sobre isso é muito interessante o relato de Henry Kissinger no livro Sobre a China, na qual mostra como a liderança do PCCh se aliou aos Estados Unidos para derrotar a União Soviética em plena guerra-fria.

Os antigos eurocomunistas, críticos do modelo soviético, aprofundaram suas análises e tentam encontrar um caminho para um projeto transformador assentado na ampliação da democracia, porém, cada vez mais distante do que poderia se chamar de socialismo.

Os comunistas viraram uma espécie de alma penada, com um enorme fardo histórico sobre os ombros. A perplexidade de Lúcio Magri, da esquerda do PCI, diante da dissolução da URSS e do próprio partido italiano, muito bem retratada na sua obra autobiográfica, intitulada o Alfaiate de Ulm, levou o líder do grupo Il Manifesto à depressão e ao suicídio.

Aqui no Brasil, a colapso da União Soviética implodiu o PCB, que já vinha de duas crises na década de 1980, uma provocada pela saída de Luiz Carlos Prestes e outra, pela dissidência do grupo renovador de Armênio Guedes.

Como dirigente do partido, diante da situação que se colocava, tinha minhas próprias opiniões, mas fui muito influenciado por duas pessoas próximas: minha mãe, Aparecida Azedo, ex-camponesa que virou pintora naïf, e Salomão Malina, o então secretário-geral do PCB, com quem trabalhava diretamente.

Ao chegar de Moscou, em conversa com a minha mãe, relatei-lhe o que estava acontecendo e, para minha surpresa, a antiga bóia-fria e operária textil, que havia sobrevivido ao Massacre de Tupã e passara por tantas agruras pessoais e políticas, disse-me sem mais delongas: “meu filho, o partido está morrendo, não consigo recrutar mais ninguém!” Era a tradução de que o poder de atração do “socialismo real” deixara de existir com o colapso do Leste Europeu.

Por causa dessa conversa, escrevi um artigo para o Jornal do Brasil defendendo uma renovação radical no PCB, com o abandono do símbolo da foice e do martelo e a mudança de sigla. Malina soube do artigo quando passei o jornal para ele, num comício de Roberto Freire, na Cinelândia, em plena campanha presidencial de 1989. Ficou muito contrariado.

Eu era o coordenador do grupo encarregado de elaborar as teses do 9º Congresso do PCB, da qual participavam os historiadores Alberto Aggio e José Antônio Segatto e os economistas, Eduardo Rocha e Raul Paixão. Durante oito anos, convivera com Malina quase diariamente, na sede do partido em São Paulo, e sabia que ele comungava do mesmo ponto de vista, mas precisava convencer os demais dirigentes históricos do PCB de que era preciso dar um passo audacioso nessa direção.

Atalhar a discussão, na sua avaliação, organizaria a resistência interna antes que a maioria no Comitê Central estivesse consolidada. Ele tinha certa razão, mas a pressão para a mudança precisaria ser feita de fora para dentro, porque a força de inércia do dogmatismo era grande. A mudança não seria possível com uma discussão intramuros.

Os trunfos da renovação, porém, eram a liderança de Roberto Freire, que seria o sucessor natural de Malina depois do congresso, e de seu candidato a vice, o médico sanitarista e cientista Sérgio Arouca. Foi dramática a reunião do Comitê Central do PCB que aprovou as teses do Congresso, intituladas “Novo socialismo, novo partido”.

Velho judeu comunista, herói da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na tomada de Montese, na Itália, Malina teve um papel decisivo na direcão e no congresso. Ele era um dos que mais estudava os novos marxistas, lia os alglo-saxões nos originais em inglês. Havia ficado dois anos preso, na década de 1950. Nesse período, na cadeia, porém, só podia ler a Bíblia. Sua intervenção foi inspirada na saga dos hebreus:

“As mudanças no capitalismo ainda estão em curso, não temos massa crítica para produzir uma nova síntese teórica. Mas temos algumas bandeiras e uma cultura política a preservar, até que uma nova geração encontre o caminho para a sociedade desejada”, disse Malina. Citando Moisés, disse que nós estamos como os judeus “que, por terem sido escravizados, não tinham cabeça para construir uma sociedade livre” após aqueles 40 anos de travessia do deserto. Será preciso que uma nova geração o faça.

Luiz Carlos Azedo, jornalista e comentarista político

Fonte: https://blogdoazedo.blogspot.com.br/2014/11/eles-eram-justos-e-puros.html?m=1

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