Transmissão familiar em regiões populares desassistidas pode levar a desastre
O Brasil dificilmente conseguirá aplicar quarentena rígida contra a Covid-19. Uma espécie de toque de recolher prolongado prevalece em países ricos europeus, mas não parece ter sido capaz de evitar matanças na Itália e na Espanha.
Ainda subindo, a taxa italiana de mortes por 100 mil habitantes pela epidemia é mais de 30 vezes a sul-coreana, já estável. A espanhola, também em alta, corresponde a quase 20 vezes a do tigre da Ásia. Algo deu bastante errado na forma como Itália e Espanha lidaram com a doença.
As pessoas ficam em casa, mas em até 85% dos casos, segundo dados da China, o contágio ocorre no próprio ambiente familiar. Ter dado atenção a esse fato talvez explique parte da eficácia da estratégia asiática.
Além de decretarem restrições à mobilidade, lá as autoridades localizaram depressa as regiões quentes do espalhamento da epidemia e, dentro delas, os indivíduos infectados, que foram isolados inclusive, notadamente na experiência da China, de outros familiares saudáveis.
No caso brasileiro, confinamentos tendem a funcionar melhor no setor minoritário da população de renda mais alta, onde há menos pessoas por metro quadrado sob um mesmo teto, além de gordura financeira e proteção legal para atravessar um período estendido sem trabalho.
Fora dessa ilha, o bicho vai pegar. Fechar escola de rico faz sentido, mas despejar milhões de crianças, sem acesso à educação a distância nem à alimentação que recebiam nas escolas, em bairros populares densamente povoados e débeis em saneamento arrisca aumentar o caldo de transmissão imediata do vírus e da ignorância a longo prazo.
Outra atitude recomendada, inspirada em iniciativas asiáticas, é fazer busca ativa de infectados nas comunidades e isolá-los de lá. Cruzar os braços enquanto a doença se espalha nas áreas populosas desprotegidas vai produzir um grande desastre.
O Brasil tem alguns dias para tentar evitar a repetição, aqui, de um cenário italiano, só que desproporcionalmente penoso para os pobres. (Folha de S. Paulo – 23/03/2020)
Vinicius Mota, Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.