Em junho, a Instituição Fiscal Independente alertou que a despesa estava superestimada
Na semana passada, o governo surpreendeu a todos ao informar que tinha cometido um erro de R$ 5,8 bilhões em sua estimativa para a despesa com pessoal e encargos sociais da União neste ano. Em vez de R$ 324,6 bilhões, o gasto ficará em R$ 318,8 bilhões. Chamou a atenção, em primeiro lugar, o tamanho do erro. Em anos anteriores, a estimativa inicial para o gasto com pessoal e o valor executado ficaram muito próximos, com diferenças, às vezes, desprezíveis.
Depois, causou estranheza a explicação oficial para o erro, que foi atribuído ao impacto menor que o estimado dos reajustes salariais concedidos aos servidores em 2019. Foram concedidos aumentos salariais ao funcionalismo em 2017 e em 2018, inclusive para mais categorias de servidores e em percentuais diferentes, mas, nesses anos, as despesas com pessoal terminaram muito próximas das estimativas iniciais.
A surpresa maior, no entanto, deve-se à data em que o erro foi percebido pela equipe econômica do governo. Somente após o pagamento da folha do funcionalismo relativa a agosto constatou-se que a projeção da despesa com pessoal estava superestimada em R$ 5,8 bilhões. No momento em que corrigiu o equívoco, o governo anunciou um descontingenciamento das dotações orçamentárias de R$ 12,5 bilhões, que só foi possível, em parte, por causa da redução do gasto com pessoal.
A projeção para a despesa de pessoal da União que constava da proposta orçamentária para 2017, por exemplo, foi de R$ 284 bilhões. O gasto efetivo realizado naquele ano ficou em R$ 284,04 bilhões, de acordo com o Tesouro Nacional. A diferença, portanto, foi insignificante. Mesmo com a despesa com pessoal naquele ano tendo crescido R$ 26,2 bilhões, na comparação com o ano anterior, por conta dos reajustes aos servidores.
Em 2018, a projeção inicial era de um gasto com pessoal de R$ 301,3 bilhões, que terminou em R$ 298 bilhões, com uma redução de R$ 3,3 bilhões. Naquele ano, o aumento da despesa foi de R$ 14 bilhões, na comparação com o ano anterior, também por causa dos aumentos salariais aos servidores.
Para 2019, a despesa com pessoal foi inicialmente estimada na proposta orçamentária em R$ 325,9 bilhões. Depois, no relatório de avaliação de receita e despesas relativo ao terceiro bimestre, o gasto foi reduzido para R$ 324,6 bilhões. No relatório do quarto bimestre, o gasto caiu para R$ 318,8 bilhões. A redução, portanto, foi de R$ 7,1 bilhões em relação à projeção que constava da proposta orçamentária para este ano.
É importante observar que, em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de junho, a Instituição Fiscal Independente (IFI) apontou para um baixo crescimento das despesas de pessoal de janeiro a abril deste ano, na comparação com os mesmos períodos de 2017 e de 2018. O aumento real do gasto tinha sido de apenas 0,5%, contra 7,3% em 2017 e 5,7% em 2018. A IFI disse que “a perspectiva é de que essa rubrica da despesa pública deixe de apresentar elevado crescimento nos próximos meses, produzindo efeitos importantes sobre a dinâmica do resultado primário”.
Em seu relatório de agosto, divulgado no dia 12 daquele mês, a IFI informa que embora, no agregado, suas projeções para 2019 estejam próximas às do governo, ela apontou diferença em relação ao gasto com pessoal. “Conforme comentamos anteriormente, é possível que a despesa no fim do ano fique abaixo da projeção oficial, pois a execução no primeiro semestre ficou aquém do esperado inicialmente (diferença de R$ 4,0 bilhões) e a projeção para o ano praticamente não se alterou no período. No cenário-base, a projeção da IFI para essas despesas é R$ 5,9 bilhões inferior à projeção do governo”, disse.
Ou seja, a execução da despesa com pessoal no primeiro semestre ficou R$ 4 bilhões abaixo do projetado, segundo os cálculos da IFI. É pouco provável o governo não saber que a projeção com que trabalhava para o gasto com o pagamento do funcionalismo neste ano teria uma trajetória bem abaixo do que projetava.
O governo tinha que ter incorporado os dados de execução no primeiro semestre em seu relatório de avaliação de receitas e despesas divulgado no dia 22 de julho. Se tivesse feito, seria obrigado a promover um descontingenciamento das dotações orçamentárias. Não o fez, mesmo com toda a Esplanada dos Ministérios à míngua, clamando por mais recursos para executar suas atividades. Muitos órgãos tiveram, até mesmo, que desligar a luz depois de certo horário e cortar o cafezinho dos funcionários.
Só no relatório do quarto bimestre, divulgado no dia 20 de setembro, o governo alterou sua projeção para a despesa de pessoal, que foi reduzida em R$ 5,8 bilhões, só R$ 100 milhões abaixo da estimativa da IFI. Ao fazer a revisão, o governo reduziu os cortes, tirando os ministérios do sufoco.
A questão agora é saber qual foi a razão para o descontingenciamento não ter sido feito antes. Especialistas ouvidos pelo Valor suspeitam que o adiamento da liberação das dotações foi decidido para mostrar à sociedade a dramática situação fiscal da União, o aperto do teto de gastos e forçar uma discussão sobre medidas para reduzir o crescimento das despesas obrigatórias. Mas a legislação não dá ao governo o poder de decidir quando deve fazer a revisão das despesas. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que a revisão seja feita bimestralmente.
O diretor-executivo da IFI, Felipe Salto, condenou a não revisão do gasto com pessoal. “A prática de superestimar despesas vai na contramão da transparência e da accountability necessárias à boa qualidade dos relatórios bimestrais de avaliação orçamentária”, afirmou. “O uso desse expediente, no passado, já causou sérios danos às contas públicas brasileiras”, lembrou.
Salto disse ainda que despesa de pessoal é praticamente dada pelos reajustes previstos e pela evolução natural do quantitativo de servidores, além da incorporação das progressões. “Não há uma razão clara para que os equívocos tenham sido cometidos e mantidos por tanto tempo nos relatórios oficiais”.
O mais grave talvez seja o fato de que o governo utilizou a despesa superestimada de pessoal deste ano como ponto de partida para projetar o gasto em 2020. Com isso, apresentou uma margem mais estreita para os investimentos e custeio da máquina do que poderia. (Valor Econômico – 26/09/2019)
Ribamar Oliveira é repórter especial e escreve às quintas-feiras – email: ribamar.oliveira@valor.com.br