Um novo desafio do SUS para Nísia Trindade

NAS ENTRELINHAS

O Ministério da Saúde está diante de outro desafio, que não tem a mesma escala da pandemia, mas é de inédita complexidade: o colapso do sistema de saúde gaúcho

O sanitarista e cirurgião Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer, lançou em Brasília, no dia 8 de maio, um pequeno grande livro: SUS, uma biografia, lutas e conquistas da sociedade brasileira (Record). Entre outras coisas, conta os bastidores da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituinte de 1987.

Desde 1977, a saúde pública no Brasil estava a cargo do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Para o grande público, era um órgão totalmente desmoralizado pelas inúmeras denúncias de corrupção e absurda ineficiência na administração direta de hospitais e contratação dos serviços privados aos segurados da Previdência. Prestava péssimo serviço a 20 milhões de brasileiros, apenas, de um total de 135 milhões. Só atendia quem tinha vínculo empregatício e dependentes.

O SUS só nasceu porque houve uma conjunção favorável de fatores – científicos, históricos, educacionais e políticos –, que brotaram nas décadas de 1960 e 1970. Nas principais escolas de medicina, renasceu das cinzas a tradição sanitarista que começara no século XIX, com a chamada Escola Tropicalista Baiana, e ganharia impulso com Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolfo Lutz, Vital Brasil e Emilio Ribas, responsáveis pelo controle das epidemias que assolavam as cidades e portos do país na República Velha.

A criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, com o apoio do Sindicato dos Médicos no Rio de Janeiro (SinMed/RJ), e o lançamento da revista Saúde em Debate, sob a liderança de Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro e Davi Capistrano Filho, nos conta Santini, proporcionaram debates que moldariam a criação do SUS, tendo como colaboradores Carlos Gentile de Mello, Sonia Fleury, Osmar Terra, Reinaldo Guimarães e José Luís Fiori. Naquele momento de ampla mobilização da sociedade, ganharia centralidade “a questão democrática” na saúde pública. Ou seja, a saúde para todos.

Como Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro e Luiz Santini, muitos sanitaristas eram filiados ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição aos militares, que assumiu a agenda sanitária. Após a vitória da chapa de Tancredo Neves e José Sarney nas eleições indiretas para a Presidência da República, em 1985, Saúde e Previdência Social ficaram com o PMDB, sob comando do ministro Waldir Pires. Hésio foi nomeado presidente do Inamps; Santini foi para a Superintendência do Rio, e Arouca, notório comunista, para presidir a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Na Constituinte, formou-se uma aliança dos sanitaristas com o Centrão – bem diferente do atual –, liderado pelo deputado federal e médico Carlos Sant’anna; o MDB do presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães; o PSDB e demais partidos de esquerda: PDT, PT, PSB, PCB e PcdoB. Essa frente ampla foi decisiva para aprovação do SUS. O maior inimigo do projeto, sempre ele, foi o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

O colapso no Sul

Santini destaca que, apesar dos crônicos problemas de financiamento, o SUS incorporou dezenove vacinas para 21 doenças (88% da população); tem o maior programa de controle de tabagismo do mundo, com impacto na redução da mortalidade por doenças cardiovasculares e o câncer; é referência no mundo para HIV e aids; financia a pesquisa em todas as áreas, inclusive tecnologia de ponta; é referência no mundo para transplante de órgãos e tem centenas de hospitais de câncer espalhados pelo país; criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), o programa Farmácia Popular e, “a joia da coroa”, o programa Saúde da Família, espalhado pelos 26 estados e o Distrito Federal, que atende mais de 100 milhões de pessoas em 4.000 municípios.

Entretanto, somente quando a pandemia do novo coronavírus começou a assombrar o mundo, em 2020, graças ao federalismo e ao regime tripartite de poderes, o Brasil se deu conta, realmente, da verdadeira importância e dimensão do SUS, numa guerra em três frentes de batalha: a assistência hospitalar (emergência), a vacinação (prevenção) e o negacionismo (o governo Bolsonaro). Agora, está diante de outro desafio, que não tem a mesma escala, mas é de inédita complexidade: o colapso do sistema de saúde pública gaúcho, cuja verdadeira dimensão emergirá quando as águas baixarem no Sul.

Os sanitaristas preveem, desde já, uma onda de diarreias infecciosas, doenças de pele, traumas, pneumonias, infecções virais, picadas peçonhentas e mordeduras de animais; na próxima semana, leptospirose, tifo, cólera, hepatite, pneumonias e sinusites bacterianas, sarna, piolho e as anteriores rondarão os gaúchos; finalmente, na quarta semana, a terceira onda; dengue, febre amarela, intoxicações, desnutrição e doenças psiquiátricas. Haja SUS!

Nísia Trindade, ministra da Saúde, está desafiada a enfrentar esses problemas no Rio Grande do Sul, para o qual já liberou R$ 66,5 milhões para hospitais, vigilância sanitária, leitos emergenciais e outras ações de saúde. Mas terá que lidar ainda com o represamento de exames preventivos de câncer de mama e colo do útero, de cirurgias e dos transplantes renais no SUS; e a crise de financiamento dos planos de saúde, que tende a impactar ainda mais a rede de assistência em todo o país. Talvez seja o momento de uma reforma no SUS. (Correio Braziliense – 19/05/2024)

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