NAS ENTRELINHAS
A guerra em Gaza acirra o antissemitismo e a islamofobia, em detrimento da convivência étnica e tolerância religiosa entre árabes e judeus no Brasil
O antropólogo Darcy Ribeiro, criador da Universidade de Brasilia (UnB), pouco antes de morrer nos deixou sua obra mais importante: O povo brasileiro, editada em 1995. Nesse ensaio histórico-antropológico, apostou na construção de uma civilização original: “tropical, mestiça e humanista”. Fugiu aos paradigmas eurocêntricos, que até a II Guerra Mundial legitimaram uma visão de que os povos de outros continentes seriam inferiores, exceto naqueles países de colonização anglo-saxã.
Obviamente, o Brasil era enquadrado na segunda categoria, visão que ainda sobrevive em parcela da elite brasileira. Para combater esse paradigma, Darcy valorizou o crioulo, o indígena, o caboclo, o vaqueiro, o matuto, o caipira e tantos mais tratados como gente de segunda classe. Contrapôs o patriciado colonial formado por donos de terra, traficantes de escravos, comerciantes, altos burocratas à massa de negros, mestiços ou brancos paupérrimos.
Esse brasileiro pobre e miscigenado, na obra de Darcy, passou a fazer parte da construção da identidade nacional. Durante 350 anos, o modelo escravagista havia impedido a formação de uma verdadeira nação. No final do século XIX, a chegada dos imigrantes europeus acentuou a marginalização dos negros, pardos e mulatos. Entretanto, o caldeirão étnico-cultural brasileiro acolheu a todos e produziu uma nova identidade, traduzida. Inventou-se o brasileiro tal como o conhecemos hoje.
O atraso do velho patriarcado colonial e das oligarquias, que se perpetuaram, não foi capaz de barrar a força do moderno, que acabou se impondo pelo alto, inclusive junto a eles, pela via conservadora. Ainda que as desigualdades e injustiças sociais continuem existindo, que os privilégios e o patrimonialismo não tenham sido erradicados, que a violência e a corrupção estejam sempre presentes, existe uma identidade nacional comum a todos os brasileiros. Isso faz com que as contradições e conflitos étnicos sejam mitigados no Brasil. Os descendentes de europeus, asiáticos e africanos traduziram sua cultura de maneira a se integrar ao espírito de brasilidade.
Motivo de tensão
Esse fenômeno explica a convivência étnica e religiosa no Brasil. Entretanto, quando essas diferenças levam às guerras lá fora, as coisas aqui ficam tensas nas respectivas comunidades. Na entrada do Brasil na II Guerra ao lado dos Aliados, alemães, italianos e japoneses viveram momentos difíceis, foram perseguidos e, em alguns casos, até confinados em campos de concentração, por simpatizarem com o Eixo. Nas guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), também houve tensões entre as comunidades árabes e judaica, mas nada parecido com o que estamos presenciando agora.
A guerra em Gaza, provocada por um atentado terrorista do Hamas, se tornou uma carnificina sem precedentes na Palestina, o que acirra o antissemitismo latente e a islamofobia no Brasil, em detrimento da convivência étnica e tolerância religiosa que sempre existiu. Árabes e judeus sempre conviveram em harmonia no Brasil, como acontece no Saara, no Rio de Janeiro.
A notícia de que a Polícia Federal (PF) prendeu, ontem, duas pessoas que teriam ligações com o Hezbollah, milícia xiita do Líbano financiada pelo Irã, de fato é preocupante. O grupo prega a destruição de Israel e estaria preparando atentados terroristas no Brasil, a exemplo do que aconteceu na Argentina, que tem a maior comunidade judaica da América do Sul, em 1994, quando 85 pessoas morreram no ataque ao prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia).
A PF informou que a Operação Trapiche tem o “objetivo de interromper atos preparatórios de terrorismo e obter provas de possível recrutamento de brasileiros para a prática de atos extremistas no país”. Em Israel, o Mossad, serviço secreto israelense, confirmou sua participação na investigação.
Os supostos terroristas teriam selecionado os alvos, incluindo sinagogas e prédios ligados à comunidade judaica no Brasil. Um deles seria a Embaixada de Israel, em Brasília.
Além dos dois presos no Brasil, a Justiça Federal expediu mandados de prisão para outros dois suspeitos que estão no Líbano — são brasileiros descendentes de libaneses. Além das duas prisões, foram cumpridos 11 mandados de busca e apreensão expedidos pela Subseção Judiciária de Belo Horizonte, em Minas Gerais, São Paulo e no Distrito Federal. (Correio Braziliense – 09/11/2023)