O Estado de S. Paulo
Judeus e palestinos precisam do mundo. Mas de um mundo politicamente articulado, sem condutas unilaterais, como as de Netanyahu e dos EUA
As comunidades humanas sempre viveram atentas ao que estava fora do local em que habitavam. Bestas selvagens, invasores, salteadores, contrabandistas, ladrões, vizinhos cobiçosos, tudo representava perigo. Fogueiras, vigilantes, muros, cercas, fossos, torres, trincheiras, rochas e estacas pontiagudas, muita coisa foi usada para proteger o território de referência.
Os olhos que se abriam para fora também precisavam olhar para dentro, para os inimigos internos, servidores corruptos, conspiradores, malfeitores. A ideia de segurança nasceu colada ao poder político.
As ameaças internas e externas aumentaram quando as sociedades ficaram maiores e mais encorpadas: pressões internacionais, transações fraudulentas, corrupção, tráfico, crime organizado. As tecnologias passaram a prover recursos de defesa, ataque, vigilância e segurança aos Estados, que aos poucos se tornaram complexos industrial-militares, prontos para a guerra e para a submissão de outros povos e Estados.
Negociadores, embaixadores, diplomatas, estadistas acompanharam esse processo. Sem eles, a história da humanidade seria contada de outra maneira, haveria muito mais sangue a tingir a paisagem. Tal corpo de amigos da paz, da palavra, do diálogo, forma o que os humanos produziram de melhor. Com ele, forjou-se uma cultura disposta a evitar o prolongamento insano de guerras e conflitos.
Quando estes profissionais do diálogo faltam, Estados e governos passam a liberar toxinas que envenenam vidas e sistemas: entregam-se à agressão, ao próprio fortalecimento, estimulam resistências inflamadas, que descambam no terror e geram reações recíprocas igualmente terroristas.
Conflitos dramáticos podem surgir por causas fortuitas. Outras vezes, os motivos são étnicos, religiosos, ligados a terras tidas como sagradas e a postulações identitárias. Não raro, conflitos nascem e crescem embalados por motivações justas e injustas, erros de cálculo, desentendimentos que atravessam os tempos e se cristalizam.
Ao olhar para esta estúpida guerra entre Israel e Hamas, não consigo deixar de pensar que ela se desencadeou porque os amigos da paz e os estadistas deixaram de prevalecer. No lugar deles, instalou-se um deserto de ideias e iniciativas construtivas. A raiva, o ódio acumulado, a miséria palestina, o medo israelense atiçaram os lados em conflito. A região ficou vazia de talentos para produzir sensatez e moderação. A política submergiu e a autoridade política esfarelou. O conflito, com isso, foi-se tornando fato consumado, entranhando-se nos corações e nas mentes de povos irmãos.
Populações impedidas de viver livremente em suas terras ancestrais em algum momento se revoltarão. Passarão a hostilizar seus opressores. Trocarão a ação política pela violência, animadas por extremistas, pela emoção e pela paixão. O que se chama de terrorismo, como o do Hamas, nasce e cresce neste solo de desolação, desesperança e exasperação. Quando, por outro lado, as revoltas privilegiam a política, convertem-se em atores com legitimidade e capacidade de negociação. Foi o que tentou fazer Yasser Arafat nos anos 1970, quando afastou o Fatah e a OLP do terrorismo e os converteu em organizações políticas, dedicadas a “criar uma Palestina unida e democrática, na qual cristãos, judeus e muçulmanos possam viver juntos em condições de igualdade”.
Governantes podem ir à guerra para obter apoio interno. Podem fazer isso para recuperar o apoio perdido e, sem se dar conta, produzir mais divisão interna e, no limite, não conseguir mais se legitimar. Podem se cercar de fanáticos fundamentalistas, tão malignos quanto os piores terroristas. Aderem, assim, ao si vis pacem, para bellum. Netanyahu é o melhor exemplo atual.
Conflitos regionais despertam os vizinhos e as grandes potências. Manobras por hegemonia e interesses geopolíticos prevalecem sobre as perspectivas humanitárias. Guerras são processos dificilmente controláveis, expostas que estão a partes mal coordenadas, a disputas entre potências, a extremistas e fanáticos, a raivas e ódios mal processados. São a continuação da política por outros meios, mas sempre tendem, ao serem escaladas, a perder sua politicidade e a ficar sem política. Atingem seu ápice quando se convertem em confronto desencarnado entre extremistas inimigos da paz.
Hoje, com um sistema internacional fragmentado, ao sabor de novos arranjos entre as potências e com pouca coordenação, equilíbrios e entendimentos ficaram onerosos. Judeus e palestinos precisam do mundo. Mas de um mundo politicamente articulado, sem condutas unilaterais, como as de Netanyahu e dos EUA.
Há muitas trevas onde deveria prevalecer a luz. Misturamse fatos, desinformação, narrativas e disputas pela verdade. A sensação é de que todos sabem de tudo, quando, no fundo, muitos poucos sabem alguma coisa. Ninguém compreende como um conflito pode se arrastar por décadas sem que se vislumbrem vias de superação.
Se, nestes dias funestos, a humanidade ficasse diante do espelho, sentiria vergonha de si própria. •
*Marco Aurélio Nogueira é Professor titular de Teoria Política da Unesp