Luiz Carlos Azedo: O mito da Independência como ato heroico de D. Pedro I

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A primeira Constituição brasileira foi outorgada por D. Pedro I; era liberal, com sinais trocados: o direito à propriedade privada foi assegurado para legitimar a escravidão

No dia 7 de setembro de 1822, o príncipe regente Dom Pedro declarou oficialmente a separação política entre o Brasil, uma colônia, e Portugal. Logo depois, em 12 de outubro de 1822, foi aclamado imperador; em 1º de dezembro, foi coroado com o título de D. Pedro I. Por que uma monarquia, e não uma república, como quase todos os demais países das Américas?

Por duas razões: havia um projeto de reunificação da Coroa portuguesa, sob a liderança de D. Pedro; segundo, um pacto entre os portugueses e os brasileiros para manter a escravidão, que os republicanos condenavam doutrinariamente. A Independência foi o desfecho da crise iniciada com a chegada da Corte portuguesa, em 1808, e concluída com a primeira Constituição brasileira, em 1824.

O sistema colonial português havia entrado em crise por causa do monopólio comercial e da cobrança de altos impostos, num mundo em que o livre comércio era uma bandeira da Inglaterra e outras potências que haviam protagonizado a Revolução Industrial e as revoluções burguesas. Além disso, diversas revoltas internas colocaram na ordem do dia a separação de Portugal: a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana e a Revolta Pernambucana de 1817, que sofreram forte influência da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos.

A crise se agravou com a Revolução Liberal do Porto, em 1820. No ano seguinte, o parlamento português obrigou D. João VI a jurar lealdade à Constituição e a voltar para Portugal. Deixou seu filho no Brasil, na condição de príncipe regente, já pensando na hipótese de que conduzisse a separação. Quando as Cortes decidiram que deveria voltar a Portugal, D. Pedro se recusou, em 9 de janeiro de 1822, conhecido como o Dia do Fico: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico”.

Pressionado, D. Pedro escalou o confronto: em 3 de junho de 1822, convocou a primeira Assembleia Constituinte brasileira; em 1º de agosto, declarou inimigas as tropas portuguesas que desembarcassem no Brasil. Logo depois, lançou o Manifesto às Nações Amigas, no qual rompeu com as Cortes de Lisboa e declarou o Brasil “reino irmão” de Portugal. A resposta portuguesa foi anular essas decisões.

Quando soube da exigência de que voltasse imediatamente para Portugal, Dom Pedro estava em São Paulo, nas proximidades do Rio Ipiranga. Foi ali que proclamou a nossa Independência, num gesto eternizado por Pedro Américo no quadro “Independência ou Morte”. A pintura foi concluída em 1888. No dia 7 de setembro 1822, o pintor sequer havia nascido.

Construção simbólica

O Grito do Ipiranga deu origem ao mito da Independência como ato heroico de D. Pedro I. Pedro Américo se inspirou nos relatos de contemporâneos do príncipe, nos padrões da arte nacionalista e romântica do final do século XIX. A obra foi feita por encomenda do governo da província de São Paulo para ocupar o salão de honra do Monumento do Ipiranga, prédio que estava em construção (Museu Paulista/USP).

Foi pintado longe do Brasil, em Florença, na Itália, onde Pedro Américo residia. Com 7,60m x 4,51m, foi chumbado na parede do museu. Pedro Américo já era um pintor consagrado, por obras como A Batalha de Campo Grande (1871), Fala do Trono (1873) e Batalha do Avaí (1874). Foi injustamente acusado de plágio da tela 1807, Friedland, de Ernest Meissonier, pintada em 1875, que só veio a conhecer anos depois.

O pintor estudou o local, a paisagem, suas cores e luminosidade no mês de setembro, a moda e os trajes da época. Seus rascunhos resultaram numa pintura completa, em tamanho menor, que hoje faz parte do acervo do Palácio Itamaraty, em Brasília. Para enaltecer a monarquia e seu primeiro imperador, Pedro Américo inseriu em sua obra militares e nobres montados em cavalos imponentes.

Na realidade, a comitiva era bem menor e fez o percurso do litoral ao planalto paulista em mulas e jumentos. D. Pedro I e sua guarda não usavam uniformes de gala. Os Dragões da Independência ainda não existiam. O casebre retratado no quadro, a Casa do Grito, foi construído em 1884. Pedro Américo não poderia estar no quadro. Soldados perfilados, espadas erguidas, uniformes de gala, garbosos cavalos com belos arreios e selas dão imponência ao cenário.

O “grito” é uma ordem militar, traduz a personalidade autoritária de Pedro I. Entretanto, houve, sim, uma guerra da Independência. Bahia, Maranhão e Pará, que tinham juntas governantes de maioria portuguesa, só reconheceram a independência em meados do ano seguinte, depois de muitos conflitos entre a população e os soldados portugueses. O povo baiano lutou muito, a Bahia comemora a Independência, ocorrida em 1823, no dia 2 de julho.

No início de 1823, foi eleita uma Assembleia Constituinte. Em virtude de divergências com Dom Pedro, foi fechada. A Constituição brasileira foi elaborada pelo Conselho de Estado e outorgada pelo imperador, em 25 de março de 1824. Era uma Constituição liberal, mas com sinais trocados: o direito à propriedade privada foi assegurado para legitimar a escravidão, que somente viria a ser abolida em 1888. (Correio Braziliense – 07/09/2023)

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