Marcus André Melo: A anistia judiciária

A expansão anômala do papel do Supremo Tribunal Federal na arbitragem política terá vastas consequências

Quando se especulava sobre a prisão de Lula em 2017, argumentei que provavelmente ele seria preso e eventualmente anistiado. A conjetura mostrou-se acertada. A anulação dos processos e provas é o equivalente funcional a uma “anistia judiciária”. Numa perspectiva positiva e não normativa da ciência política não importa se a decisão é legal ou legítima, mas por que razão se espera que determinados fenômenos ocorram e quais suas consequências.

Historicamente, no país, há um padrão de resolução de graves conflitos políticos por meio de anistia e conciliação. Foram 52 anistias desde 1890. O objetivo maior foi a “pacificação política”, como mostrou Ann Schneider. Mas a analogia acaba aqui. Há dois aspectos que merecem destaque. Os protagonistas dos grandes episódios de anistia, indulto e graça foram os presidentes —Floriano (Revolta da Armada), Vargas (Revolução Constitucionalista), Kubitschek (Aragarças), Figueiredo (luta armada)—, não o Poder Judiciário.

Por outro lado, as anistias diziam respeito a crimes políticos e militares, não a episódios de corrupção cuja punição adquiriu caráter quase consensual na opinião pública (apoio médio de 94% em 2016-17, no Ipsos). Consequentemente, sua legitimidade tem sido contestada de forma contundente.

A “anistia judiciária” representa uma expansão anômala do papel do STF como árbitro político. E terá vastas consequências não antecipadas. Engendra uma hiperpolitização do tribunal e uma polarização sem paralelo (que em outros países se manifesta em questões como o aborto). As evidências são eloquentes: 44% dos eleitores confiam no STF, e idênticos 44% não confiam. No grupo de eleitores de Lula, 81% confiam na corte; no de Bolsonaro, 91% não o fazem.

Diferentemente da anistia política, os juízes não podem argumentar que o objetivo é a” pacificação política”, por isso recorrem a malabarismos.

A “anistia judiciária” tem também consequências sistêmicas: a extinção dos processos da Lava Jato e a anulação das provas terão efeitos sobre mais de uma centena de processos. O caso do atual presidente fornece um escudo coletivo, o que explica uma espécie de pacto de silêncio, em que pese a magnitude do que está em jogo.

A conjuntura em que isso ocorre intensifica o conflito. O julgamento do mensalão e a Lava Jato foram exemplos de ações de controle contra o abuso de governantes que estavam no poder (o PT), não fora dele, como agora. Isso lhe conferia enorme legitimidade. A reação atual assume caráter de vendetta contra perdedores, partidarizando o conflito e minando a legitimidade institucional do tribunal. Nesse movimento, o controle do Judiciário torna-se o principal objetivo —o troféu— da disputa política. (Folha de S. Paulo – 11/09/2023)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

Leia também

As novas tarifas de Trump: Impactos na União Europeia e no Brasil

No sábado, 12 de julho, o presidente dos Estados...

Esclarecimentos jurídicos sobre extradição no caso Carla Zambelli

Por Renata Bueno, ex-parlamentar italiana e advogada internacional Roma –...

80 Anos do Dia da Vitória

Eduardo Rocha Economista pela Universidade Mackenzie Pós-Graduado com Especialização em...

O muro que divide a história das famílias italianas no mundo

O fim da cidadania italiana por descendência como conhecemos:...

Direito à crítica não pode degenerar em ataque pessoal

publicado no site contraponto em 19 de maio de...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!