Se alguém é humilhado quando o Legislativo não cumpre seu papel é o eleitor (a)
A afirmação do ministro Haddad de que a Câmara está com “um poder muito grande” e “não pode usar este poder para humilhar o Senado e o Executivo” é no mínimo esdrúxula. Sua conclusão, no entanto, de que “a gente saiu do presidencialismo de coalizão e hoje vive uma coisa estranhíssima, que é um parlamentarismo sem primeiro-ministro; não tem primeiro-ministro, ninguém vai cair, quem vai pagar o pato político é o Executivo”, merece ser discutida.
Se alguém é humilhado quando o Legislativo não cumpre seu papel é o eleitor (a). A separação de Poderes no presidencialismo assenta-se na ideia de contraposição de interesses opostos que cria incentivos para o controle recíproco. A fórmula madisoniana é “ambição deve ser contraposta à ambição”. A maioria da Câmara é distinta —mas igualmente legítima— da eleição majoritária do Executivo, e contrapõe-se ao Executivo. Madison justifica: porque os homens não são anjos. Mas disso os brasileiros não precisam ser lembrados.
O presidente brasileiro continua sendo “o mais poderoso constitucionalmente do planeta” como mostrou Shugart e Carey (1992) em um dos clássicos sobre relações Executivo-Legislativo. Seus poderes constitucionais ativos e reativos permanecem inalterados desde 1988, salvo dois aspectos: medidas provisórias e orçamento. No entanto, os partidos estão mais fortes devido ao fundo de campanha e a coligação do presidente muito mais fraca, como mostrei aqui.
Nos EUA, o presidente não dispõe sequer da prerrogativa de propor projetos de lei, quanto mais MPs. O Legislativo é descentralizado e as comissões congressuais desempenham o papel central na vida política e nas políticas públicas. O macartismo foi protagonizado pelo presidente de uma comissão, não pelo Executivo.
O orçamento é impositivo, não autorizativo, como em quase todas as democracias maduras. Quando um presidente tentou contingenciar programas aprovados pelo Congresso, algo que o presidente brasileiro faz ordinariamente, o Congresso o ameaçou com um impeachment e a aprovação do Impoundment Control Act (1974), que criou regras para a submissão de pedidos de cortes orçamentários, os quais se não forem aprovados em “45 dias legislativos” , implicarão em execução imediata.
Como no Brasil, nos EUA projetos localistas (pork barrel) negociados por parlamentares para seus distritos abundam. Mas alto lá: o jogo clientelístico é inteiramente intra-parlamentar, o Executivo é ator marginal no processo. Não se troca emenda por liberação de recursos pelo Executivo, como entre nós, conforme já discuti aqui.
Todo esse protagonismo não levou nenhum analista a caracterizar o regime dos EUA como parlamentarismo sem primeiro-ministro. (Folha de S. Paulo – 28/08/2023)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)