Fernando Gabeira: Estilhaços da guerra na Ucrânia

Lula começou a perder a condição de mediador ao sugerir que os ucranianos abrissem mão da Crimeia, invadida em 2014

Estilhaços da guerra na Ucrânia feriram levemente o Brasil, num momento ascendente de nossa política externa. O governo Lula conseguiu romper de forma rápida o isolamento a que Bolsonaro nos condenou. Primeiro, foi o discurso em Sharm el-Sheikh, no Egito, afirmando a política de preservação da Amazônia e do desenvolvimento sustentável. Em seguida, foram as viagens: Argentina, Uruguai, Estados Unidos e China. As coisas pareciam tão bem que Lula decidiu trabalhar pela paz na Ucrânia. É compreensível, porque segue a tradição brasileira e os fundamentos de nossa política externa: a defesa da paz.

Durante a campanha, Lula já fizera uma declaração ambígua sobre a guerra na Ucrânia. Mas isso desapareceu no oceano de declarações de uma eleição nacional em que política externa quase não conta. Lula afirmou que tanto a Ucrânia quanto a Rússia eram culpadas, pois numa guerra ambos os contendores são responsáveis. Talvez tenha sido uma manifestação radical do pacifismo que não bate com a realidade. A Ucrânia foi invadida. Os vietnamitas foram culpados por guerrear contra franceses e americanos invasores? Os antifascistas foram culpados na Guerra Civil da Espanha? Os aliados, por combaterem o nazismo?

Na Argentina, Lula, já empossado, pela primeira vez criticou a invasão da Ucrânia pela Rússia. Ele queria criar um Clube da Paz, e sua mensagem foi bem recebida por líderes como Macron na França. Mas, numa entrevista a um jornal francês, o presidente começou a perder a condição de mediador ao sugerir que a Ucrânia abrisse mão da Crimeia, invadida em 2014. Há muitos russos na Crimeia, mas a região é considerada território ucraniano, e a reação de Kiev e alguns países ocidentais foi negativa.

As declarações de Lula na China praticamente o colocaram próximo da posição de Putin, ao afirmar que Estados Unidos e Europa não deveriam mandar armas para a Ucrânia. Se isso acontecesse, na verdade, os ucranianos estariam resistindo hoje com paus e pedras. Logo em seguida às declarações na China, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, visitou Brasília e declarou que Rússia e Brasil têm uma visão global similar.

Como assim? Lula foi aos Estados Unidos apoiar Joe Biden na defesa da democracia. Um dos escândalos das eleições americanas foi a interferência russa na eleição de Trump. Não há possibilidade de uma democracia e um governo autoritário terem uma visão similar do mundo. É possível compreender a posição da esquerda, que considera o avanço da Otan no Leste Europeu como uma tentativa de asfixiar a Rússia. Mas a resposta de Putin foi adequada? A Ucrânia caiu no colo da Europa, e a Finlândia, um importante vizinho, entrou formalmente na Otan.

Se a esquerda brasileira pensa assim, é compreensível. Acontece que as eleições não foram vencidas apenas por ela, mas por uma frente um pouco mais ampla. A política externa de um país, sobretudo nessas circunstâncias, não pode ser reflexo de uma visão partidária. Não se trata de obedecer aos Estados Unidos. O problema central é que Biden também é acossado internamente, apoiou as urnas eletrônicas e condenou as invasões de 8 de janeiro. Os europeus, sobretudo Noruega e Alemanha, financiam o Fundo Amazônia.

Os Estados Unidos acabam de anunciar um aporte de US$ 500 milhões para salvar a floresta, tentando dobrar a ajuda com a iniciativa privada. O meio ambiente não depende de declarações infelizes, embora adeptos do governo tendam a achar que foram elas que dinamizaram a ajuda. O autoengano é livre.

Tudo bem negociar com os russos, mais ainda com os chineses, nosso maior parceiro comercial. Mas há também comércio com Europa e Estados Unidos, além de um vínculo especial: todos somos regimes democráticos. A incompreensão dessas circunstâncias pode enfraquecer o esforço para romper o isolamento internacional. Atropelar a ideia de uma frente democrática com uma visão única da esquerda pode conduzir o governo a um tipo de solidão que interessa à extrema direita, sobretudo a ela. (O Globo – 24/04/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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