Hélio Schwartsman: Impostura autoritária

É grave tentar estender à população um núcleo particular de crenças

O Senado instalou sua própria bancada evangélica, com o objetivo de tentar barrar a legalização dos jogos de azar e enfrentar pautas que podem ampliar o acesso ao aborto ou descriminalizar as drogas, além de defender a liberdade religiosa.

Sou liberal. Religiosos têm todo o direito de achar que jogo, aborto (ou mesmo sexo) e drogas são pecado. Sendo este o caso, têm o dever moral de convencer seus fiéis a ficar longe dessas obras do demônio. Podem, se quiserem, jogar pesado na consecução dessa meta. Os católicos, por exemplo, inventaram um engenhoso sistema de excomunhão automática (“excommunicatio latae sententiae”) para quem se envolver com abortos. Não sei se funciona (apostaria que não muito), mas não vejo problema em religiões (ou clubes) se valerem de regras próprias, ainda que esdrúxulas ou draconianas, desde que abraçadas voluntariamente por seus membros.

O que me parece inaceitável é que religiosos tentem impor suas preferências também para pessoas que não partilham de sua fé. Vejo aí uma confissão de impotência e uma usurpação. A sensação que dá é que, como não conseguem convencer nem os fiéis a seguir a doutrina, procuram terceirizar para o Estado a função de bedel. Se o jogo é ilegal, fica menos trabalhoso manter o rebanho longe do bingo.

Bem mais grave, me parece, é buscar estender a toda a população um núcleo particular de crenças. Aí já não é mais preguiça, mas um caso de violação a um dos mais fundamentais princípios do Estado liberal democrático, que é a aceitação de que diferentes pessoas e grupos vivam segundo seus próprios valores. Nem todos precisam ver jogo, sexo e drogas como pecado. Tentar universalizar a proibição é uma impostura autoritária.

Pior, a bancada evangélica se põe em contradição. Não dá para defender o banimento e, ao mesmo tempo, propugnar pela liberdade religiosa. Basta lembrar que há religiões que usam drogas em seus cultos. (Folha de S. Paulo – 17/03/2023)

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