NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
As seis facadas no painel As mulatas, de Di Cavalcanti, foram a síntese da natureza dos vândalos bolsonaristas que invadiram, depredaram e saquearam o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). A jovem atriz carioca Marcia Cerqueira, no Twitter, foi cirúrgica: “Esfaquear a pintura As Mulatas de Di Cavalcanti me parece o vandalismo mais simbólico do que representa o bolsonarismo: o ódio à arte e à cultura brasileira, o racismo, a misoginia, a ignorância, a agressividade e o desprezo pelo patrimônio público, em um só tempo”.
Uma das mais importantes obras do pintor modernista brasileiro, que sofreu forte influência do catalão Pablo Picasso e do muralista mexicano Diego de Rivera, a obra está avaliada em R$ 8 milhões, mas pode chegar a mais de R$ 20 milhões, valor do painel Bumba meu Boi, de sua autoria, vendido num leilão paulista, em 2019. As mulatas fala da mestiçagem sem negar as contradições da tragédia da escravidão, uma das características da obra de Di Cavalcanti. Restaurado, o painel será um ícone do que aconteceu neste 8 de janeiro, em Brasília.
O documentário January 6th, com 3 horas de duração, disponível no You Tube, mostra que o ataque ao Capitólio, nos Estados Unidos, serviu de roteiro para o que aconteceu em Brasília: somente foi possível porque houve um retardo deliberado de três horas para que as forças de segurança entrassem em ação. Os bolsonaristas seguiram o mesmo esquema, e as responsabilidades devem ser apuradas. Os serviços de inteligência sabiam com antecedência o que estava por acontecer. Grave foi a omissão do governador Ibaneis Rocha, afastado do cargo, e o comportamento ambíguo dos responsáveis pela segurança do Distrito Federal.
A invasão sem resistência do Palácio do Planalto, de responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teve as armas roubadas, e da Guarda Presidencial, é incompreensível. As tropas do Exército poderiam ter barrado o acesso às salas do segundo e do terceiro andares nos seus corredores; e dissipar os manifestantes nos andares inferiores com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, mas seguiram o mesmo procedimento adotado em relação ao acampamento no QG do Exército: não fazer nada.
Nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, segundo monitoramento realizado pela DataHub, uma empresa de Brasília, a articulação da invasão ao Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Superior Tribunal Federal (STF) começou dias antes do ocorrido. Em grupos do Telegram, bolsonaristas convocaram “patriotas” para ocuparem Brasília; ensinaram como se proteger de gás de efeito moral; ameaçaram “tomar o poder”; publicaram passo a passo o que deveria ser feito e os locais que deveriam, supostamente, ser “recuperados pelo povo”.
Terrorismo
Como orientações para os atos, utilizaram vídeos da manifestação de junho de 2013, que chegou ao teto do Congresso, e da invasão da Presidência do Sri Lanka, em 2022, o que demonstra que as ações foram premeditadas. O código “Festa da Selma” ou “Festa da Irmã”, senha para as ações, apareceu, inclusive, em links para lives no Instagram, rede social aberta, e se referia à organização dos atos de vandalismo. O código e discursos de “tomada de poder” também foram observados no Twitter, incitando dias antes o que ocorreria em 8/01.
No WhatsApp, também foi observada a convocação dos bolsonaristas a participarem do ato em Brasília. Algumas publicações tinham um teor mais agressivo e orientavam sobre métodos e preparativos que os manifestantes poderiam adotar no momento do protesto para invadir o Congresso Nacional. Nos grupos, também foi observada a organização de caravanas para que os manifestantes pudessem se locomover dos estados com destino a Brasília.
Era uma situação anunciada nos aplicativos de mensagens nos quais o bolsonarismo se organiza desde 2015. Felizmente, ninguém morreu. O que aconteceu no domingo, porém, mostrou que a extrema direita bolsonarista, além de bruta, é burra. Será desmantelada pelas investigações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que estão unidos. Espera-se que o Alto Comando do Exército, diante do ocorrido, aprenda com a própria experiência a não ser leniente com esse movimento extremista. O acampamento do QG somente não foi removido na madrugada de segunda-feira para dar tempo aos parentes de militares de abandoná-lo.
Entretanto, “o enquadramento dos vândalos como terroristas não é possível”, segundo o jurista Marco Aurélio Marrafon, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Uerj. Além de associação criminosa, porém, é possível enquadrá-los nos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, art. 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, com pena prevista de 4 (quatro) a 8 (oito) anos de reclusão”, além da pena correspondente à violência; de golpe de Estado, Art. 359-M: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído, com pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão”, além da pena correspondente à violência. Dura lex sed lex? Ma non troppo! (Correiro Braziliense – 10/01/2023)