Luiz Gonzaga Belluzzo: A meritocracia, de Confúcio a Sandel

Na configuração atual, as sociedades escancaram a incapacidade de entregar o que prometem aos cidadãos

Tzu-chang perguntou a Confúcio: “Como um cavalheiro deve ser para que digam que ele conseguiu distinguir-se?”. O Mestre disse: “Que diabos você quer dizer com ‘distinguir-se’?”.

Tzu-chang respondeu: “O que tenho em mente é um homem que tem certeza de ser conhecido, sirva ele em um reino ou em uma família nobre”. O Mestre disse: “Isso é ser conhecido, não se distinguir. O termo ‘distinguir-se’ descreve um homem que é correto por natureza e que gosta do que é certo, sensível às palavras das outras pessoas e observador da expressão nos rostos delas e que sempre se preocupa em ser modesto. Por outro lado, o termo ‘ser conhecido’ descreve um homem que não tem dúvidas de que é benevolente, quando tudo o que ele está fazendo é mostrar uma fachada de benevolência que não condiz com suas ações”.

Ao palmilhar os caminhos de Confúcio, o norte-americano Michael J. Sandel, em seu livro “A Tirania do Mérito”, vai cuidar dos valores que inspiram a meritocracia. O autor contrapõe delicadamente a virtude e o vício no mesmo movimento de constituição dos comportamentos dos indivíduos nas sociedades contemporâneas. “Se meu sucesso é obra minha, algo que ganhei por meio do talento e trabalho duro, posso me orgulhar disso, confiante de que mereço as recompensas que minhas conquistas trazem. Uma sociedade meritocrática, então, é duplamente inspiradora: afirma uma poderosa noção de liberdade e dá às pessoas o que ganharam para si mesmas e, portanto, merecem. Embora seja inspirador, o princípio do mérito pode tomar um rumo tirânico, não apenas quando as sociedades não permitem que seja cumprido, mas também – especialmente – quando o fazem. O lado negro do ideal meritocrático está embutido em sua promessa mais sedutora, a promessa de autorrealização pessoal. Essa promessa vem com um fardo difícil de suportar. O ideal meritocrático coloca grande peso na noção de responsabilidade pessoal”.

Ao escolher essa forma de tratamento da meritocracia, Sandel evita os caminhos dos pensadores binários que separam o vício da virtude, o bem do mal. Ele mergulha esses dois conceitos nas profundezas do espírito que anima a vida concreta dos indivíduos-habitantes das sociedades contemporâneas, sempre enredadas na maldição de negar o que afirmam e de afirmar o que negam.

A busca pelo enriquecimento, pela diferenciação do consumo e dos estilos de vida é a marca registrada da concorrência na sociedade de massa. Os impulsos para acompanhar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados esboroam-se nas angústias da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios.

Sandel reconhece que, em sua configuração atual, as sociedades escancaram a incapacidade de entregar o que prometem aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social promovida pela transformação tecnológica e pela migração dos empregos para as regiões de baixos salários.

A pressão competitiva-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos nos indivíduos-utilitaristas consumidores. Os trabalhos de destruição da subjetividade são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.

Aqui caberia recorrer a Freud para tratar do narcisismo dos ressentidos. Sigmund observa: “O narcisista parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e das coisas no mundo exterior, sem tê-las substituído por outras em sua fantasia. Qual é o destino da libido retirada dos objetos na esquizofrenia? A megalomania, característica desses estados, indica a resposta… A libido subtraída do mundo exterior foi trazida para dentro do eu, emergindo assim um estado ao qual podemos dar o nome de narcisismo”.

Minhas deambulações curiosas me levaram à leitura do artigo dos psicanalistas Camila de Araujo Reinert e Matias Strass burger: “Um, Nenhum, Cem Mil” – Uma breve compreensão do narcisismo em Green através de um personagem literário de Pirandello e de um caso clínico”. Green é o psicanalista André Green, considerado um dos mais criativos herdeiros de Sigmund Freud. O artigo traz uma epígrafe copiada do Livro III das metamorfoses de Ovídio, o grande poeta romano.

“O adolescente (Narciso), cansado pelo esforço da caça e pelo calor, estendeu-se no chão, atraído pelo aspecto do lugar e pela fonte. Mas, logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica extático diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore de Paros. Deitado no chão, contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio. Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se”.

Na aurora do século XXI, Elisabeth Roudinesco ausculta os rumores narcísicos cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Diz ela que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, os maiores charlatães, as mais criminosas?

O sexo não é experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis? Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?”. O avanço exasperado da “quantidade” encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos. (Valor Econômico – 06/12/2022)

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, professor emérito da Universidade Federal de Goiás

Leia também

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Reforma tributária será novo eixo da disputa política

NAS ENTRELINHASSe a desigualdade é grande e a riqueza...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!