Cristiano Romero: O que está por trás da polarização política?

Avanços, como as cotas nas federais, explicam insurgência da direita

O atentado terrorista em Brasília, ainda que fracassado, deveria conscientizar definitivamente as elites do país – todas, não apenas as ricas – de que o abismo que separa os brasileiros é profundo e imperscrutável. Não se trata de uma novidade, e a referência aqui não se limita à violência (do Estado e de seus oponentes) observada durante as duas ditaduras ocorridas século passado (1937-1945 e 1964-1985).

O Brasil é um país condenado à desigualdade porque a formação de seu povo se deu sob o regime escravagista mais longevo da história dos homens e que, na verdade, nunca acabou, apenas se transformou. Fator de acumulação de capital durante quase quatro séculos, esse regime era parte fundamental do modelo econômico adotado aqui, baseado na produção e exportação de produtos básicos (pau-brasil, cana de açúcar, café, algodão, fumo, minérios).

O uso de mão de obra indígena (até meados do século XVI) e africana escravizada deu aos produtores vantagem competitiva incomparável. O fim da escravidão, a última a se dar nas Américas, foi fortemente rejeitada pelas oligarquias rurais, de tal modo que resultou, entre outras consequências, na queda da monarquia no ano seguinte, na importação de mão-de-obra de países europeus para “branquear” a força de trabalho e na marginalização de milhões de ex-escravos que viviam no campo e nas cidades.

Principal característica nacional desde sempre, como constatou o abolicionista Joaquim Nabuco pouco antes da proibição legal da escravatura, em 13 de maio 1888, o racismo está presente em todas as relações sociais. A discriminação, por exemplo, contra mulheres, pobres e nordestinos, mesmo àqueles que, digamos, sejam considerados brancos, espelha o tratamento dispensado aos africanos escravizados. Estes eram “propriedade” de produtores rurais e de chefes de família abastados dos centros urbanos.

Em “Haiti”, Gilberto Veloso e Caetano Veloso tratam do tema: “Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado// Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos// Dando porrada na nuca de malandros pretos e ladrões mulatos // E outros quase brancos // Tratados como pretos // Só pra mostrar aos outros quase pretos // (E são quase todos pretos) // E aos quase brancos pobres como pretos // Como é que pretos, pobres e mulatos // E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados (…)”.

A escravidão oficial foi abolida no Brasil de forma bastante gradual – entre 1850, quando o tráfico negreiro foi proibido, e 1888. O conceito de propriedade esteve presente, porém, por todo o tempo, uma vez que, quando um escravo ou seu descendente era alforriado em decorrência de alguma lei, seus “donos” eram compensados financeiramente.

Segundo dados de 2019 da Pnad, do IBGE, 42,7% dos brasileiros se declaram brancos, 46,8% afirmam serem pardos, 9,4%, pretos, e 1,1%, amarelos ou indígenas. “Esse dado deve ser bem observado pela maioria dos progressistas e por setores do movimento negro que consideram a política afirmativa como um instrumento em favor da diversidade. É muito mais do que isso. É um instrumento em favor da democracia, do funcionamento do Estado, que favorece o país inteiro. Achar que ela garante a diversidade é considerar que os negros são uma minoria, como nos Estados Unidos. Mas no Brasil eles são a maioria”, disse, em elucidativa entrevista, concedida em 2018 a Amanda Rossi, da BBC Brasil, o historiador Luiz Felipe Alencastro.

Este é um aspecto central para se tentar entender o que está em jogo na polarização política vivida pelo país. Nas últimas décadas, a sociedade civil, do lado dos negros e dos mais pobres, avançou, em termos de direitos e conquistas reais, num ritmo mais veloz que o observado até então na história do país. A mudança mais notável ocorreu nas universidades federais, obrigadas por lei a oferecerem 50% das vagas a estudantes pobres, negros e descendentes de indígenas.

Em 2018, o número de matrículas de pretos e pardos ultrapassou pela primeira vez a de brancos no conjunto das universidades federais. É evidente que isso não resolve o problema do racismo e da discriminação social existente no país, mas promove inclusão, prática que, com o tempo, ajudará a diminuir as desigualdades. “Juridicamente, a situação estava definida: os negros não sofrem discriminação legal, mas há mecanismos informais que os discriminam e desqualificam de forma óbvia”, observou Alencastro na fascinante entrevista à BBC Brasil.

Negros, principalmente, mas também mulheres, indígenas, gays, trans, pobres, imigrantes não brancos, sempre viveram em permanente risco de morte no Brasil, sob a mira de fuzis da polícia e de criminosos. Estes, onde não há poder público, reinam como ditadores nos Estados paralelos, onde viver é exceção. Ascensão da extrema-direita, como nunca se viu antes no Brasil, pode ser a insurgência de minorias brancas contra a emergência da maioria negra, feminina e pobre.

É como se estivéssemos todos aqui no mesmo palco, mas sem consciência do papel de cada grupo na sociedade. Não se trata, aqui, de atribuir o fenômeno social às vitórias eleitorais do PT. O que está acontecendo vai muito além da política. É inegável que o partido de Lula, dadas suas ligações históricas com movimentos sociais, seja catalisador do que ocorre nas ruas. Mas, este é apenas um elemento do que estamos vendo.

Mudanças na sociedade em direção a menos desigualdade são visíveis e gratificantes para quem jamais acreditou que este país possa alcançar a civilização em meio a tanto horror e iniquidade: os direitos e garantias fundamentais da Constituição de 88, o voto do analfabeto, o Bolsa Família, as cotas raciais e sociais nas universidades públicas, a estabilização da moeda (sim, o fim da inflação crônica fechou um dos mecanismos mais perversos de concentração de renda), a união civil entre pessoas do mesmo sexo etc. A história está apenas começando.

Uma coisa parece certa: morreu a ideia de que a construção de uma nação no Brasil dar-se-ia pela socialdemocracia, com o PT e o PSDB fazendo alianças à esquerda e à direita para governar. A direita extrema e disposta a tudo acordou e subiu ao palco, com força impressionante. O bolsonarismo é mais novo que o lulismo. Independe, a partir de agora, de Jair Bolsonaro. Este perdeu a eleição, mas discípulos ascenderam ao poder nos Estados mais populosos e ricos. Lula começa a governar no domingo contra a vontade de quase 59 milhões de eleitores. (Valor Econômico – 29/12/2022)

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