Fernando Gabeira: O estranho lugar da Copa

Do ponto de vista da tradição do esporte, o Catar é pouco importante. Sua seleção está fora da lista das cem melhores do mundo

A Copa do Mundo começou ontem. Já estamos pintando ruas, discutindo a convocação de Daniel Alves, palpitando sobre a escalação, debatendo o potencial dos rivais.

Certamente, chega por aqui um dos grandes debates mundiais: o Catar é um lugar certo para fazer uma Copa do Mundo?

De um modo geral, a resposta é não. O jornal alemão Bild cunhou a a manchete “Catástrofe” para definir a escolha da Fifa.

Do ponto de vista da tradição do esporte, o Catar é pouco importante. Sua seleção está fora da lista das cem melhores do mundo.

O clima do país é bastante duro para a prática do esporte. No verão, seria impraticável, sobretudo para seleções que vêm dos países frios: 50 graus. Foi preciso adiar para o inverno para conseguir uma temperatura menos cruel para os atletas.

Não será uma Copa barata. Os investimentos devem ser superiores a US$ 220 bilhões, mais que R$ 1 trilhão, 20 vezes acima dos gastos da Copa de 2018 na Rússia.

Se fosse apenas o problema dos gastos, talvez não se falasse em boicote como se fala na Alemanha. As emissões de carbono serão três vezes superiores, precisamente num momento em que se sonhava com emissões zero.

No campo dos direitos humanos, o Catar também não é o lugar da Copa. Os trabalhadores estrangeiros são superexplorados, e só recentemente um sistema de contratação retrógrado foi abolido.

O jornal The Guardian anunciou num certo momento que mais de 6 mil trabalhadores estrangeiros morreram no Catar. Não se sabe ao certo quantos morreram na construção dos estádios e da infraestrutura para a Copa.

Recentemente, o embaixador da Copa, o ex-atleta Khalid Salman, disse numa entrevista que o “homossexualismo é um dano mental”. É um aviso sobre os transtornos que torcedores gays podem sofrer no torneio. Aliás, todos os fãs do esporte terão de desembolsar muito dinheiro para ver os jogos de perto. Para um brasileiro, a ida ao Catar custaria cerca de R$ 52 mil.

A esta altura, vale a pena colocar a questão: por que, com senões, a Fifa escolheu o Catar em 2010? No mundo inteiro há especulações sobre suborno dos dirigentes da entidade. Muitos já foram afastados por denúncias de corrupção. Sobre outros casos de suborno, há processos nos Estados Unidos e, com a péssima fama dos cartolas mundiais, poucos duvidam de que rolou grana.

Mas há outras especulações: fala-se também que a França apoiou o Catar para concluir uma grande venda de armas. De fato, ao lado da Índia e do Egito, o Catar é um grande cliente da França.

No calor dos grandes jogos, é possível que essa controvérsia sobre a Copa no Catar chegue ao Brasil. Na verdade, torcedores já chegaram ao Catar.

Foi uma surpresa agradável para mim ver gente dançando e cantando com as bandeiras brasileiras. De um modo geral, a bandeira e a camisa amarela aparecem aqui em manifestações de protesto.

Infelizmente, seriam torcedores pagos pelo Catar, o que o comitê organizador nega. Aparentemente chegavam a Doha para assistir à Copa e engrossar a torcida brasileira. Torcedores temporários, como foram definidos por lá.

Tudo não passou de uma ilusão momentânea. Aquela alegria me impressionou, pois parecia que a alma brasileira tinha se transplantado para corpos indianos, deixando-nos apenas com os símbolos pátrios nas mãos de uma multidão triste e indignada rezando diante de quartéis.

Cheguei a pensar: felizmente, temos a música e o futebol. Se tudo acabar por aqui, sempre haverá gente cantando e dançando com a bandeira e camisas amarelas pelo mundo.

Caí por algumas horas na armadilha dos organizadores desta Copa fora do lugar. Felizmente, não muito longe dali, no Egito, o nome da Amazônia voltava a ser pronunciado como um símbolo de esperança na COP27.

Para muitos de nós, a presença da floresta tropical, preservada com garantia de uma vida digna para seus habitantes, é um grande motivo de orgulho.

Dito isso, resta agora torcer pela seleção, sem necessariamente vestir uma camisa amarela e sair por aí. Na melhor das hipóteses, podem nos confundir com torcedores pagos pelo Catar. (O Globo – 21/11/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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