Luiz Carlos Azedo: Os Brasis que vão às urnas com Lula e Bolsonaro no segundo turno

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputarão o segundo turno das eleições no dia 30 de outubro, alcançaram 48,43% e 43,20% dos votos no primeiro turno, respectivamente. Lula venceu em 14 estados; e Bolsonaro, em 12, além do Distrito Federal. Esse resultado revela uma profunda divisão do país, que também ocorreu em eleições anteriores.

O petista ficou com a maioria dos votos em todos os estados do Nordeste, enquanto Bolsonaro teve maior adesão em todos os estados do Sul e Centro-Oeste. As regiões Sudeste e Norte ficaram divididas. No Sudeste, Lula venceu em Minas Gerais, mas perdeu nos outros três estados. No Norte, quatro estados ficaram com o ex-presidente; e três, com o atual, entre os quais o Pará.

Há muitas leituras para essa divisão entre os Brasis meridional e o setentrional, principalmente o Nordeste. Uma delas é a de que o Brasil moderno apoia Bolsonaro, enquanto o atraso está firme com Lula e não abre. Esse tipo de interpretação já se traduziu numa guerra suja de memes nas redes sociais, na qual o preconceito contra os nordestinos revela uma xenofobia estranha e perigosa para a coesão social e a unidade nacional.

Xenofobia é a hostilidade e o ódio contra pessoas por elas serem estrangeiras ou por serem enxergadas como estrangeiras, como às vezes acontece com os nordestinos no Sul do país. Esse sentimento já foi muito comum no Rio de Janeiro, contra os “paraíbas”, e em São Paulo, em relação aos “baianos”, como eram chamados de forma generalizada, durante o processo de urbanização e industrialização do país, que atraiu para essas metrópoles grande número de migrantes, que fugiam da miséria, da fome e da seca do Nordeste. Em Brasília, a expressão “candango”, que era pejorativa em relação aos que trabalharam na construção da nova capital, porém, virou sinônimo de brasiliense.

Autor de Casa Grande & Senzala, o sociólogo Gilberto Freyre foi muito contestado por estabelecer como padrão para a formação do patriarcado brasileiro a composição étnica do Nordeste brasileiro, principalmente de Pernambuco. Em resposta, na conferência “Continente e ilha”, apresentou sua tese de que nos desenvolveríamos social e culturalmente em ilhas, e essas ilhas, em arquipélagos, ou numa enorme ilha-continente. Segundo Freyre, na América Portuguesa haveria uma base cultural lusitana e cristã que nos daria unidade, e, por consequência, seria a chave da brasilidade.

“Desculturização”

Freyre destacou que o “processo sociológico de povoamento” do Sul do país, a partir de Porto Alegre, se desdobrou em dois sentidos: no de ilha e no de continente. Ressaltou, ainda, as contribuições italianas e alemãs à cultura nacional, que chamou de “valores neobrasileiros”, mas que só ganham espaço na medida em que são assimilados pela cultura nacional. Quanto a isso, chamou atenção para o “pangermanismo”, que representaria uma ameaça real, que viria a ser duramente combatida por Getúlio Vargas após o Brasil entrar na guerra contra o Eixo.

Os sentimentos de continente e de ilha seriam antagonismos constitutivos do Brasil e estariam em equilíbrio, uma vez que o contrário disso nos sujeitaria “(…) a uma verdadeira guerra civil, na sua psicologia social e dentro de sua cultura”. É mais ou menos o que está ocorrendo neste momento de radicalização política.

Por outro lado, essa xenofobia reflete um processo regressivo de “desculturização”, que outro genial intérprete do Brasil, Darcy Ribeiro, atribuiu à crueldade, à rigidez e ao autoritarismo com que se deu a associação entre negros, índios e brancos no processo de colonização e que se reproduz em razão do nosso deficit educacional e atraso cultural, inclusive das elites econômicas.

Segundo Darcy Ribeiro, foi dentro dos cenários regionais que a busca de si mesmo se fez necessária para se iniciar o nosso processo civilizatório. A “humanidade” renasceria da extinção de povos, com suas línguas e culturas próprias e singulares, a partir do surgimento de macroetnias maiores e mais abrangentes. Darcy registra a existência dos Brasis “crioulo”, “caboclo”, “sertanejo”, “caipira” e “sulino”, facilmente identificados, por exemplo, na nossa cultura popular, mas que também têm expressão na forma como se faz política nas diferentes regiões do país.

De certa forma, Lula e Bolsonaro se identificam com maior ou menor facilidade com cada um desses Brasis. Ou seja, a divisão política e ideológica do país tem uma dimensão antropológica que precisa ser levada em conta para que possa ser superada, condição para a construção de qualquer projeto de futuro em bases democráticas e que busca a superação de nossas desigualdades e iniquidades sociais. (Correio Braziliense – 07/10/2022)

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