Fernando Gabeira: Que país é este do ‘imbrochável’?

Sei que é uma pergunta batida, mas, na comemoração dos 200 anos da Independência, é razoável perguntar que país é este.

O que nos diz o presidente Bolsonaro subindo no palanque e gritando que é imbrochável? O que nos diz a multidão que o segue? O que nos diz o presidente comparando sua mulher com a do rival?

Estava meio perdido na melancolia de um desfile militar quando comecei a fazer essas perguntas. Como um velho delirante, concluí que estávamos quase prontos para participar da Segunda Guerra Mundial, embora até para isso os equipamentos tenham me parecido um pouco obsoletos.

No momento em que um grupo fez acrobacias com a própria arma, jogando-a para o ar, rodando-a febrilmente, pensei: isso é uma preparação para dias difíceis, um trampo diante dos sinais luminosos de trânsito?

Na verdade, enquanto Bolsonaro exorcizava aos gritos seu pavor da castração, a fumaça das queimadas na Amazônia começava a chegar a São Paulo. O cheiro de fumaça sempre teve um efeito de despertar consciências adormecidas, sobretudo quando acompanhado de calor.

Pouca coisa acontece. O presidente beijou sua mulher na boca, a conselho do marketing. Alguns vizinhos saem vestidos de amarelo com a bandeira do Brasil. Ignoram que um grande porta-aviões, o São Paulo, navega pelo mundo, carregado de substância tóxica, o amianto, e é rejeitado por todos. Venderam para a Turquia, e os turcos se uniram na praia com cartazes: não somos a lixeira do mundo. O Reino Unido proibiu que navegasse pelo Estreito de Gibraltar, e ele segue, solitário e rejeitado, para consumir-se no seu veneno, possivelmente na Ilha das Cobras.

A fumaça de nossa futura ruína continua chegando às metrópoles do Sudeste, e tudo o que presidente pode nos dizer é isto: “Sou imbrochável”. É preciso mais que um pênis ereto para debelar a fome de 33 milhões de brasileiros e a insegurança alimentar de quase 100 milhões.

Segundo Vinícius, o homem que diz sou não é, o homem que diz “tou” não “tá”. Os gritos de Bolsonaro na esteira de um desfile militar não são de bom-tom, diante do grande consumo de Viagra pelas Forças Armadas.

Na véspera desse espetáculo, em Copacabana, se você gritasse o clássico “joga a chave, meu amor”, era capaz de cair um paraquedista. Trazidos pelo vento, andaram se embaralhando nas árvores. Felizmente ninguém se feriu, exceto a confiança na eficácia de nossa defesa.

Foi um aniversário melancólico, se olhamos para a saúde de nossa democracia arranhada por Bolsonaro, para a integridade de nossas florestas, ardendo com o sopro de uma política destruidora.

Continuo acompanhando a saga de nosso porta-aviões, vendido como ferro-velho, expulso de portos onde tenta ancorar, e fico me perguntando se isso não é o Brasil ou apenas o símbolo de uma época, cujo veneno ainda pode durar muito e demandará paciência e habilidade para neutralizá-lo.

Se nosso limitado presidente fosse visitar Paquetá e refletir um pouco sobre José Bonifácio, certamente aprenderia alguma coisa — pelo menos a lição elementar de que a História não é algo que se conquiste com um pênis ereto, mas uma construção coletiva que nos tornou uma das importantes nações econômicas do mundo, com suor, coração e cérebro. Em outras palavras, estamos comemorando 200, e não 12 anos. Não é possível que, agitando tanto a Bíblia, ainda não tenha deparado com a “Primeira carta de Paulo aos Coríntios”: quando era menino, pensava como menino, agia como menino, agora que sou grande, dei de mão às coisas de menino.

No fim da tarde, quando saí para o trabalho, vi alguns vizinhos de Ipanema voltando com suas bandeiras, um pouco desfeitos pelo calor da primavera que se anuncia.

Pensei: este é o nosso país. Sobreviveremos ou seremos destruídos por uma política suicida? Duzentos anos de independência, não imaginava conviver com essas dúvidas. Muito menos, que estadistas como José Bonifácio fossem substituídos por fanfarrões gritando “imbrochável, imbrochável”. (O Globo – 12/09/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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