Fernando Gabeira: Rio, a capital do reino secreto

O inverno no Rio é ameno e ensolarado. Do ponto de vista do clima, sentimo-nos no melhor lugar do mundo e quase esquecemos a tragédia que envolve nossa vida pública. O governo do estado tem mais de 20 mil funcionários secretos no ano eleitoral e gasta com eles em torno de R$ 270 milhões.

É um dinheiro pago na boca do caixa. Só uma agência de banco em Campos dos Goytacazes registrava um saque a cada 49 segundos, sem dúvida um recorde.

No Rio, alguns dos governadores foram presos, e possivelmente o estado deverá manter essa tradição num futuro próximo. Mas não é um lugar isolado no Brasil. Digamos que é apenas a capital do país que tem um orçamento secreto e, nos últimos meses, decreta sigilo de cem anos sobre algumas decisões e documentos oficiais.

Outro dia, numa mesa entre amigos em Brasília, discutíamos o que fazer após as eleições. Mencionavam-se alguns destinos possíveis, caso o resultado fosse tenebroso, Uruguai, Portugal.

De qualquer forma, seguirei aqui, esse é o meu plano. Já vivi muitos anos fora do Brasil e há algumas dezenas de lugares, dentro do país, onde viveria bem.

Não se trata de desistir do Brasil, assunto que já foi tema de campanha presidencial.

Na minha idade, desisti de desistir. O simples fato de sobreviver cada dia é um ato de resistência. E além do mais, ainda que fique indignado e reclame, o Brasil é inesgotável em suas loucuras.

Às vezes, sinto-me culpado por continuar vivendo no Rio, como se nada acontecesse na esfera política. Tenho procurado votar bem, acompanho a trajetória dos candidatos que escolhi, participo de grupos de debate sobre a reconstrução a partir da sociedade. “E daí?”, me pergunto. Há uma barreira impenetrável quando se pensa em ajustar a máquina pública aos interesses do Estado.

Outro dia vi o debate entre candidatos ao governo do Rio. Fiquei um pouco deprimido. O governador é um tipo de político que me parece de outra galáxia. Não há por onde discutir, por onde criticar, aliás ele nem se importaria com isso:

—Vocês reclamam nas redes sociais, mas amanhã cedo retomo meu trabalho pelo povo do Rio de Janeiro.

Naturalmente, retoma seu trabalho dirigindo mais de 20 mil funcionários secretos, provavelmente “aspones” (assessores de porra nenhuma) para obter um resultado que, de resto, cairá na rubrica do sigilo por cem anos.

O Rio é capital das trevas bolsonaristas. Aqui, o filho do presidente foi acusado de rachadinhas, a Justiça conseguiu neutralizar a acusação; afinal, é um filho de presidente num país em que juízes sonham ser ministros.

Das rachadinhas passamos à rachadona. Se fosse apenas um mundo paralelo com seus deputados, “aspones”, governador e presidente, não me importaria tanto. Acontece que esse mundo paralelo se alimenta de dinheiro público, essencial para manter escolas, hospitais, aparato de segurança. Provavelmente alguns de nós não dependem dessas escolas, nem dos hospitais, e possam até manter segurança própria. Mas aí é que está a perversidade do esquema: ele se alimenta de dinheiro essencial para manter serviços de educação e saúde para quem não pode comprá-los no mercado.

As rachadinhas não foram punidas. O processo de Flávio Bolsonaro perdeu-se nos meandros de uma Justiça cheia de juízes que sonham ser ministros e querem agradar ao presidente.

No final do conto da carochinha, o filho do presidente foi para Brasília, comprou a mansão de R$ 6 milhões e será feliz pelo resto da vida.

Por isso, digo, é importante ficar e resistir para contar essas histórias. Perversos com os pobres são generosos com escritores em busca de histórias. Imaginem 20 mil funcionários secretos enfileirados diante do caixa do banco, sacando freneticamente a cada 49 segundos; imaginem a rotina de mais um governador na cadeia, embalando o presídio com cantos religiosos e um violão.

Durante muitos anos, o realismo mágico reinou na literatura latino-americana. No Brasil oficial, vivemos a ressaca do realismo mágico: triste e vulgar. (O Globo – 15/08/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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