Fernando Gabeira: Hipocrisia nas críticas à Lei Rouanet

Muito discutida nas redes sociais a história dos cantores sertanejos que fazem shows milionários custeados por dinheiro público. Logo eles, severos críticos dos artistas que se utilizaram da Lei Rouanet para financiar seus espetáculos.

Hipocrisia à parte, os mecanismos usados pelos cantores bolsonaristas é sofisticado e visa, exatamente como o famoso orçamento secreto, a burlar a transparência.

A Lei Rouanet está escrita, tem mecanismos de controle e prestação de contas. Nesse sentido, é mais avançada. Isso não significa que, no passado, com ou sem ela, não tenham acontecido shows discutíveis, como o de Ivete Sangalo na inauguração de um hospital no Ceará. O dinheiro teria sido mais adequadamente gasto em esparadrapo, seringas e aspirinas.

Mas tudo isso é apenas detalhe diante da grandeza do tema “política cultural”. Se não avançarmos um pouco mais, corremos o risco de nos perdemos nesse bate-boca.

Na semana passada, numa conversa com Carlos Minc e André Trigueiro para a TV, afirmei que um dos grandes impactos positivos para mim na Rio-92 foi a afirmação de que preservar a diversidade cultural era tão importante como preservar a própria biodiversidade.

Na minha cabeça, não vejo futuro econômico se não levarmos em conta, de um lado, o valor da natureza e, de outro, da produção de conteúdos no século XXI.

Muitas pessoas esnobam uma política cultural sem perceber a importância da indústria do entretenimento para o PIB planetário . Outras ignoram o conceito de economia criativa, por meio do qual, usando a história, mitos e a cultura locais, é possível achar uma saída turística para localidades esquecidas no interior.

No livro “A conveniência da cultura”, George Yúdice mostra como a cultura tornou-se um importante componente da economia global e, mais ainda, como, em certos momentos, ela se revela um eixo do desenvolvimento urbano, como é o caso do Museu Guggenheim em Bilbao, na Espanha.

A incompreensão do problema faz às vezes com que alguns lutem por uma política para a indústria automobilística e rejeitem a ideia de uma política cultural, pelo fato de estarem vivendo, de certa forma, num mundo que já passou.

Não tenho a pretensão de formular uma política cultural para o Brasil. Mas é inevitável chegar a ela, a partir da questão ambiental: quem preservaria nossas florestas se não fossem as comunidades indígenas e os quilombolas?

Não teria escrúpulo em defender a ajuda oficial a determinado tipo de arte. Acho que os americanos fizeram bem financiando a viagem do Modern Jazz Quartet pelo mundo: era o exercício do soft power. Da mesma forma, é razoável que a Alemanha financie o trabalho revolucionário da dança de Pina Bausch, um orgulho para o país.

O problema mais fascinante é como financiar a produção cultural, ampliar empregos, de uma forma democrática. De um modo geral, governos querem financiar quem os apoia e boicotar quem os critica.

Segundo um analista independente, Idelber Avelar, crítico do governo Lula, houve um momento em que isso foi conseguido nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura. Havia espaços que não exigiam fidelidade ao governo e eram voltados para os setores mais pobres, chamados Pontos de Cultura.

Uma funcionária da Unesco, citada por Yúdice, afirma que, infelizmente, só se convence governo a investir em cultura argumentando que reduz conflitos sociais e promove o desenvolvimento econômico.

A cultura assim é levada a cumprir tarefas de outras áreas. Acrescentaria que, numa cidade como o Rio, será impossível uma política de segurança civilizada sem um diálogo com a cultura, sobretudo a da juventude.

Embora o espaço seja curto, creio que, por trás dessa manobra de alguns cantores sertanejos, há um vasto caminho de discussão sobre a cultura, sem partidarismos e sem a ilusão de que o valor reside apenas em bens materiais. (O Globo – 06/06/2022)

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