Pagamento de quinquênios é mais um escárnio para o cidadão
Na história brasileira, os avanços são conquistados a duras penas, enquanto os retrocessos são aprovados em movimentos sorrateiros. Desde a Constituição de 1988 lutamos para moralizar os supersalários de algumas categorias da elite do funcionalismo público, estabelecendo um teto e tentando extinguir penduricalhos como o auxílio-moradia. Mas o lobby das corporações, especialmente da magistratura e do Ministério Público, é incansável.
A nova artimanha de juízes, procuradores e promotores para burlar o teto salarial aplicável a todos os servidores do país (hoje em R$ 39.293,32) é a criação da chamada “parcela indenizatória de valorização por tempo na Magistratura e Ministério Público”. Prevista na Proposta de Emenda à Constituição nº 63/2013, a medida ressuscita o chamado “quinquênio”, um adicional de 5% a ser pago a cada cinco anos de serviço, benesse que foi abolida no âmbito do Executivo federal na reforma administrativa de FHC em 1998 e, no Judiciário e MP, com a reforma do Judiciário de Lula em 2005.
No texto da Justificativa à PEC 63/2013, bem como nas notas oficiais publicadas por suas entidades de classe, juízes e membros do Ministério Público argumentam que seu ofício precisa ser valorizado. Concordo plenamente – assim como devemos valorizar professores da rede pública, médicos e enfermeiros do SUS, fiscais do Ibama e tantos outros cargos públicos que prestam serviços tão essenciais para o país quanto o provimento da Justiça.
A verdade é que as carreiras da magistratura e do MP já são supervalorizadas no Brasil. Segundo estudo dos pesquisadores Luciano da Ros e Matthew Taylor, o vencimento básico de um juiz em início de carreira no Brasil é 11,3 vezes superior ao PIB per capita brasileiro – enquanto nos países avançados essa mesma proporção fica entre 1,15 vezes na França e 3,23 vezes nos Estados Unidos.
“Mas outras carreiras da elite do Executivo e do Legislativo vêm conseguindo acréscimos salariais indiretos, e a magistratura e o Ministério Público estão perdendo a sua atratividade”, diz a Associação dos Magistrados Brasileiros. De fato, categorias como advogados públicos, auditores fiscais e delegados da Polícia Federal vêm conseguindo a aprovação de honorários, bônus e adicionais que diminuíram a distância de seus contracheques frente aos subsídios de juízes e promotores.
Acontece que o argumento esconde da opinião pública a profusão de auxílios, adicionais, gratificações e outras benesses criadas pelos Tribunais e Procuradorias Gerais em todo o país, como a possibilidade de “vender” até 1/3 dos 60 dias de férias anuais. Segundo meus cálculos, tomando como base os dados das folhas de pagamento compilados e divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, 78,4% dos magistrados brasileiros ganharam mais do que os ministros do Supremo Tribunal Federal em 2020.
Juízes, procuradores e promotores também dizem que o quinquênio é necessário porque o tempo de serviço não é contabilizado na sua estrutura salarial. “Juízes e promotores recém aprovados no concurso ganham igual a seus pares com 20 anos de serviço público”, é uma crítica bastante frequente. Sem dúvida trata-se de uma distorção, mas ela é gerada justamente pela permissão de que um jovem saído há pouco da faculdade, com pouquíssimos anos de experiência, receba um salário inicial de R$ 27.500,17 simplesmente porque foi aprovado num concurso difícil.
Para consertar esse problema, a solução seria a criação de um plano de carreira, num sistema que combine uma tabela de remuneração crescente, promoções e transferências levando em conta o tempo no cargo e também uma avaliação séria da produtividade, capacitação e qualidade de desempenho de cada integrante das carreiras. Pergunte se os magistrados e membros do Ministério Público topam essa proposta – é muito melhor garantir, na Constituição, um reajuste generalizado e automático de salários a cada cinco anos.
Juízes e membros do Ministério Público também defendem o quinquênio argumentando que há um número grande de processos, o que desestimularia seu trabalho e os submeteria a uma elevada carga de stress. De fato, cada juiz estadual brasileiro tem, hoje, sob a sua responsabilidade, em média 6.283 processos, segundo a última edição do relatório Justiça em Números. Mas o mesmo levamento indica que cada magistrado conta com o auxílio, apenas para os serviços judiciários, de quase 12 servidores e assessores para fazer o seu trabalho.
Em vez de “compensar” juízes pelo excesso de trabalho, melhor seria atacar suas causas. Se as associações de juízes, procuradores e promotores estudassem, propusessem e defendessem melhorias nos códigos processuais, na consolidação de jurisprudências e na legislação com o mesmo afinco que promovem seus pleitos corporativos de aumentos salariais e outras regalias, o peso dos processos sobre os ombros dos juízes (e da sociedade como um todo) seria muito menor.
A maior prova de que a instituição do pagamento do quinquênio para a magistratura e o Ministério Público é um mero penduricalho salarial está na sua natureza de “parcela indenizatória”. Essa expressão mágica, no Direito Administrativo, significa que o valor recebido não se submete ao teto do funcionalismo e nem sofre a incidência de Imposto de Renda. Ou seja, a cada 5 anos os juízes ganharão um pagamento extra de 5% a cada mês, furando o teto e ainda líquido de impostos. Maravilha, não?
Só que a regalia é ainda melhor. Segundo o texto da PEC nº 63/2013, também entrará no cômputo do quinquênio o tempo que juízes, procuradores e promotores trabalharam como advogados ou em outras carreiras jurídicas antes de passarem no concurso público. E, como ninguém é de ferro, o benefício continuará a ser pago mesmo após a aposentadoria – e extensível aos pensionistas, em caso de falecimento, claro.
A PEC nº 63/2013 vem sendo chamada de “PEC do quinquênio”. No entanto, as justificativas para sua aprovação são tão furadas, e o momento para sua aprovação tão inadequado, que melhor seria chamá-la de “PEC da falta de noção”. (Valor Econômico – 24/05/2022)
Bruno Carazza, mestre em Economia e doutor em Direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)