Em 2018, fui à Rússia com a equipe da editoria de Esportes do GLOBO. Adoro futebol, mas para conversar. Minha tarefa era escrever sobre a atmosfera. Levei uma dezena de livros.
O mais importante deles para mim foi o belo trabalho de Orlando Figes sobre a história da cultura russa. Existe em inglês sob o título “Natasha’s dance”. Uma boa parte dos livros era sobre política, sobretudo oposição a Putin. Um deles me levou à releitura, nestes tempos de invasão da Ucrânia. Chama-se “A invenção da Rússia — A ascensão de Putin e a época das fake news”. Seu autor, Arkady Ostrovsky, ganhou o Prêmio Orwell pelo trabalho.
Interessante como quase tudo estava lá. A Crimeia já havia sido anexada, e Putin não estava disposto a parar por aí.
Ostrovsky o apresenta como um produto da mídia russa, inventado pela KGB, que o transformou numa espécie de James Bond do lado de lá, depois de sua passagem como espião na Alemanha.
Espiões russos eram muito queridos no país, sobretudo depois de uma série chamada “Dezessete momentos de primavera”. O herói, Maxim Isaev, infiltrou-se no alto-comando nazista com o nome de Max Otto Von Stierlitz. Sua imagem é cultuada como a de um grande herói.
Putin encarnou o personagem, posando sem camisa, lutando judô, e mergulhava em busca de tesouros. Na época, era o homem certo para salvar a Rússia dos radicais islâmicos da Chechênia.
Quando digo que estava tudo lá, quero dizer que Putin depois de 2014 já dizia que, em caso de avanço da Otan na área de influência russa, não hesitaria em usar armas nucleares e, o que é pior, com algum apoio popular.
Na análise da personalidade de Putin, Ostrovsky conclui que ele não é um Stálin, embora esteja pronto para exercer violência seletiva, dentro e fora da Rússia. É um stalinismo pós-moderno, que prefere métodos mais sutis de controle, sobretudo o da televisão.
Quando o livro de Ostrovsky estava no prelo, havia ainda protestos em mais de cem cidades da Rússia. A maioria dos manifestantes tinha 17, 18 anos e nasceu nos primeiros anos de Putin no poder. Os garotos não se dispunham a aceitar a propaganda, nem tinham o cinismo e medo das gerações anteriores. Muitos devem estar presos agora.
Se tivesse dado mais atenção aos argumentos de Ostrovsky, teria previsto a guerra na Ucrânia e, com ela, a ameaça nuclear contra o Ocidente. O que nem de longe me passou pela cabeça é que Putin, mesmo sem lançar bomba atômica, tinha uma enorme possibilidade de fulminar os ucranianos e de nos matar aos poucos.
Como não trabalhei a ideia de uma guerra na Ucrânia, não previ também suas consequências sobre o clima, sua capacidade de agravar o aquecimento global.
De repente, a guerra trouxe dúvidas sobre a segurança alimentar a muitos países. A Alemanha se dispõe a rever algumas regras ambientais para acelerar sua produção agrícola.
Com a necessidade de oferecer uma alternativa aos europeus para o gás russo, Biden deve estimular a produção americana para exportá-la na forma de líquido. Com isso, suas metas ambientais terão de ser reduzidas e adaptadas à nova realidade.
Sem falar nos gastos militares, que crescerão na Alemanha e noutros países europeus, assim como nos Estados Unidos. É difícil combater o aquecimento global aumentando a produção de combustíveis fósseis, assim como investir na transição da economia em plena corrida armamentista.
Depois da Copa do Mundo, as eleições brasileiras foram impactadas por fake news. As fake news já eram um instrumento importante para a KGB desde o fim da Segunda Guerra. O diplomata americano George Kennan previu que a desinformação seria a coluna mestra da política russa, que, afinal, prosseguiu mesmo depois do fim da União Soviética.
Putin apenas desenvolveu um longo trabalho com novos meios eletrônicos: usar trolls para espalhar desinformacão nas mídias sociais, difundir múltiplas versões sobre um mesmo fato para convencer de que não existe uma descrição confiável, mas apenas um conjunto de “fatos alternativos”.
Trump e Bolsonaro beberam nessa fonte. Por incrível que pareça, são discípulos de Yuri Andropov, um dos grandes líderes da KGB. (O Globo – 04/04/2022)
Fernando Gabeira, jornalista