Um dos maiores especialistas do País em contas públicas, Daniel Couri, escreveu sobre a necessária modernização do processo orçamentário a partir de 2023. O artigo, em parceria com Paulo Bijos, integra a coletânea Reconstrução: o Brasil nos anos 20 (Saraiva, 2022), que organizo com Laura Karpuska e João Villaverde.
O processo orçamentário é uma grande confusão. Na Assembleia Nacional Constituinte, o economista e deputado constituinte José Serra comandou os trabalhos que culminaram no capítulo de Finanças Públicas da Constituição. Serra reuniu um grupo de especialistas do calibre de Maílson da Nóbrega, José Roberto Afonso e Andrea Calabi para analisar as ideias que chegavam a toque de caixa. Ali, postulou-se a tese da responsabilidade fiscal. A Constituição federal obrigaria à apresentação de uma lei complementar para regular o uso do dinheiro público.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF – Lei Complementar n.º 101), aprovada em 2000, é o maior avanço nessa matéria desde as reformas dos anos 1980: criação da Secretaria do Tesouro Nacional, fim da chamada Conta Movimento (mantida entre o Banco do Brasil e o Banco Central) e extinção do orçamento monetário (conta paralela a abrigar variadas demandas por fora do orçamento geral). Com a LRF, sairíamos do campo de várzea, de uma vez, para um gramado bem cuidado. As interpretações heterogêneas da LRF, no entanto, frustraram parcialmente essa expectativa – tema para outro artigo.
Na Constituição, até uma regra de ouro foi desenhada, por iniciativa do deputado constituinte César Maia. Infelizmente, esse bom princípio – não faça dívida pública para torrar em custeio – nunca foi respeitado para valer. O Plano Plurianual (PPA), instrumento de planejamento, também não prosperou. Como a partilha do bolo se dá na Lei Orçamentária Anual (LOA), o PPA nunca recebeu a atenção devida do establishment.
Outro ponto é que a própria Lei de Finanças Públicas (Lei n.º 4.320, de 1964), recepcionada pela Constituição, não foi atualizada até hoje. Neste assunto, a proposta formulada pelo economista Hélio Tollini para o senador Tasso Jereissati (PSDB-Ceará) é a saída. O fato é que todas as pontas soltas acabam sendo alinhavadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), ano a ano, transformando-a num javali com cabeça de lagartixa e asa de morcego. Desvirtuou-se o espírito da lei: guiar o processo fiscal e orçamentário.
E não é só isso. O teto de gastos, a meta de resultado primário (receita menos despesa sem contar juros da dívida) e a regra de ouro não convivem harmoniosamente. O teto foi um avanço, mas precisará ser ressuscitado a partir do ano que vem. O velório, o enterro e a missa de sétimo dia já ocorreram em 2021. Refiro-me às Emendas 113 e 114, derivadas da PEC dos Precatórios. Só não vê quem não quer. A boa notícia é que Couri e Bijos têm saídas para este imbróglio.
A saber, sugerem um “tripé orçamentário” baseado em: regra para a despesa, marco fiscal e orçamentário de médio prazo e revisão periódica do gasto público. O primeiro eixo, acrescento, pode ser o teto de gastos atual aprimorado, na linha do que propus na coluna Teto de gastos 2.0. O segundo é a adoção do chamado “medium-term expenditure framework”, a balizar a definição dos espaços orçamentários a partir de projeções fidedignas para a economia e as receitas e despesas. Por fim, a revisão de gastos, conhecida na literatura como “spending review”, seria o instrumento para concretizar as prioridades do marco de médio prazo. Sem economês: corte no gasto ruim para financiar o bom.
A diferença entre o que chamo de “tripé Couri-Bijos” para o sistema atual é gigantesca. Primeiro, porque está ancorado nos estudos das melhores práticas no resto do mundo. Segundo, porque o instrumento de planejamento, diferentemente do PPA, será vinculado à discussão do Orçamento. O marco de médio prazo – ou quadro de médio prazo, como denomina Tollini, craque no tema – teria de ser respeitado.
Simples assim: o espaço fiscal indicado pelas projeções, feitas de modo independente e técnico, seria o limite para gastar. Isso porque o teto de gastos seria “distribuído” pelas caixinhas do Orçamento, ex ante, para criar um plano de voo crível. Daria para escapar dele? Só com justificativa técnica e conta bem feita. O teto, por sua vez, poderia assumir diferentes desenhos. O fundamental é que, por trás de sua definição, estivesse o essencial: o cálculo do esforço fiscal necessário para garantir uma desejada trajetória para a dívida pública. Por isso, arrecadação também importa.
Neste construto, não há garantia de melhoria da qualidade do gasto ou de redução da gigantesca dívida de mais de 80% do PIB (ou 90%, no conceito do FMI). Isso dependerá, também, do compromisso político em torno do novo regime. Mas há, de partida, solidez técnica.
Eis aí uma proposta sobre a qual os candidatos e candidatas à Presidência da República deveriam se debruçar. Desde já, vaticino: a saída para o nó górdio na gestão do dinheiro público, esta verdadeira crise fiscal, passa pelo tripé Couri-Bijos. (O Estado de S. Paulo – 15/03/2022)
FELIPE SALTO, DIRETOR-EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI (INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENDENTE ), COM MANDATO CONFERIDO PELO SENADO (2016 A 2022). AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A IFI