Luiz Sérgio Henriques: O Quixote e as ideologias

Mentes em delírio vocalizam a identidade entre nazismo e comunismo desconhecendo a história e as diferenciações entre esses dois totalitarismos

Uma anedota sobre exércitos e soldados é que estarão sempre fadados a travar a guerra anterior, aferrados disciplinadamente a linhas de defesa imaginárias ou irrelevantes na concreta guerra atual, que não entendem e em que batem cabeça uns com os outros. Pode-se dizer, sem medo de errar, que o caso é pior entre os “ideólogos”, entendidos como personagens que, por inclinação nem sempre razoável, costumam desorientar-se em meio a moinhos mal-assombrados, sem ter a candura ou a generosidade do engenhoso fidalgo de La Mancha.

O comunismo histórico talvez seja o “tema do delírio” preferido por quem se aplica a tais fumosos exercícios mentais. Equipará-lo ao nazismo é tópos obrigatório da virulenta retórica deste nosso tempo embaralhado por ideias e categorias em rápida obsolescência. Sim, não há dúvida: aquele comunismo inseriu-se plenamente entre os fenômenos totalitários do século passado e, por isso, mereceu morrer entre os escombros do Muro ou da URSS. Não soube, não quis ou não pôde se reformar: a denúncia dos inúmeros crimes de Stalin, em 1956, ficou a meio caminho. Os propósitos reformistas de Gorbachev vieram tarde demais. Estava “tudo podre”, segundo o diagnóstico consensual dos últimos reformistas, e havia pouco o que salvar.

Tudo isso é verdade e, no entanto, distinções precisam ser formuladas. O comunismo esteve desde o começo condicionado por uma conjuntura de guerra, e quem duvidar da ferocidade das trincheiras de 1914 deve retirar da estante o romance famoso de Erich Maria Remarque. Implantou-se numa realidade politicamente atrasada, marcado, portanto, por um irredimível “pecado oriental”. Assumiu, em seguida, com o grande ditador, as vestes de um gigantesco – e disforme – processo de modernização autoritária em guerra interna com o majoritário mundo camponês, uma guerra que arruinaria para sempre a agricultura do país. A realidade do gulag é incontestável. E o leitor que tiver aceitado o convite de voltar à estante deve, também, espanar a poeira do incontornável Ivan Denissovitch, de Soljenítsin, com sua descrição minuciosa – e devastadora – da rotina árida do degredado.

Apesar disso, se não as demais distinções, ao menos a fundamental deve ser ressaltada: num momento crítico da História do século, o socialismo assim concebido – com suas limitações ou, para falar a verdade, com suas degenerações – encontrou-se com o liberalismo dos Estados democráticos do Ocidente. Um liberalismo, de resto, sempre em tensão, admitindo e assegurando direitos até por força da competição soviética. Por instantes decisivos estivemos todos “com o russo em Berlim”, e já por isso, como vários pensadores liberais asseveram com honestidade, o totalitarismo soviético não se identifica com o totalitarismo nazista, erguido intrinsecamente – este último – sobre a destruição física do “outro”, do “diferente”, a começar por quem, como o judeu, encarnou por séculos a fio o bode expiatório mais óbvio.

Rejeitada a fácil identidade, é preciso admitir, não menos honestamente, o imenso déficit democrático da experiência do comunismo no poder – para usar expressão suave. Em nenhuma circunstância este comunismo demonstrou força de atração suficiente para ser o motor de uma revolução internacional, de acordo com as ilusões despertadas pela ruptura de 1917. A Terra política não era “plana”, tal como a concebera o bolchevismo, esta extrema-esquerda da modernização tardia e periférica. No Ocidente, os partidos comunistas cumpririam uma trajetória bem diferente da inicialmente suposta, aproximando-se cada vez mais – ainda bem! – das ideias de reforma gradual das suas sociedades. O laço umbilical com a URSS, contudo, sobre eles pesaria como uma hipoteca de resgate custoso, da qual a maioria não iria se desvencilhar.

Ainda nos anos 1930, Antonio Gramsci, prisioneiro do fascismo e, mesmo assim, a cabeça mais livre entre os intelectuais comunistas, apontou pioneiramente a deformidade do modelo soviético, conceituando-a como “estatolatria”. Em outras palavras, como absorção do embrião de sociedade civil por parte da potência estatal, cada vez mais orientada em torno do mito de Stalin. Sem ir além da fase mais elementar e “corporativa” – aquela que se esgota no mero domínio por meio da força –, o comunismo soviético não seria a “chave explicativa” do século 20 e muito menos sua corrente principal. E a derrota da “revolução global” já estava dada muitíssimo antes dos acontecimentos aparentemente surpreendentes de 1989 ou 1991, a crer em historiadores do porte de Giuseppe Vacca ou Silvio Pons.

Os moinhos de vento contra os quais se lançou o valoroso Quixote ao menos existiam. De fato, lá estavam torres e pás, a desafiarem o fidalgo enlouquecido pela leitura desordenada dos romances de cavalaria. Os ideólogos de hoje, irracionalmente dependentes do inimigo de outrora, teriam até o seu lado comicamente absurdo, não fossem também perigosos, ao se mostrarem capazes de patrocinar um regresso intelectual de proporções massivas que chega a minar alicerces essenciais da convivência civil. (O Estado de S. Paulo – 20/02/2002)

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