Luiz Carlos Azedo: Crise da Ucrânia é uma mudança na política mundial

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE.

Estava escrito nas estrelas o que acontece na Ucrânia, invadida por tropas do Exército russo por ordem do presidente Vladimir Putin. A dura retaliação econômica dos Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) aos dirigentes, magnatas e instituições financeiras russas também. Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, desde o primeiro momento da crise, ao lado do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, havia advertido que o Ocidente não toleraria uma agressão à Ucrânia. Os dois pagaram para ver e, agora, estamos diante de um novo conflito envolvendo as fronteiras da Europa, descongeladas pela queda do Muro de Berlim e o fim da antiga União Soviética, no final do século passado.

É bom lembrar que os Estados Unidos atuam como uma espécie de xerife do mundo, nem sempre sob a bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU), desde a dissolução da antiga Iugoslávia, em 1991. Ironicamente, com apoio da Rússia, os EUA contiveram os planos expansionistas da Sérvia, duramente bombardeada por três meses. A política de limpeza étnica do então presidente sérvio, Slobodan Milosevic, foi punida exemplarmente. Depois de perder as eleições em 2000, o líder nacionalista acabou preso por crimes de guerra no cerco à Sarajevo e pelo massacre de Srebrenica, ocorrido em julho de 1995, quando tropas sérvias executaram cerca de oito mil bósnios. Os Estados Unidos também exerceram o papel de xerife no Iraque, na Líbia, na Síria e no Afeganistão, entre outros países.

Na Ucrânia, porém, os Estados Unidos não recorreram à ação militar direta. A razão é óbvia: a Rússia herdou a paridade estratégico-militar da antiga União Soviética, em razão de seu poderio nuclear. Esse era o ponto de equilíbrio da antiga “guerra fria”. A derrota dos regimes comunistas do Leste Europeu ocorreu devido à estagnação econômica e à grande insatisfação popular com a falta de liberdade. Essa é a mesma aposta de Biden para derrotar Putin. Ou seja, os EUA pretendem isolar politicamente o líder russo e provocar o colapso de seu governo, com sanções duríssimas por parte de todos os países da Otan.

A situação é muito diferente de 20 anos atrás para os Estados Unidos exercerem seu papel. Nesse período, a Rússia conseguiu se reestruturar, e a China emergiu como a segunda potência econômica do planeta, disputando a hegemonia do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para Pacífico. A aliança entre os Estados Unidos e a China, inaugurada no governo Nixon, que fora fundamental para a derrota do regime soviético, resultou num novo cenário internacional: o mundo deixou de ser unipolar.

Diante do declínio de sua hegemonia absoluta, no governo de Donald Trump, os Estados Unidos iniciaram uma guerra comercial com a China, mas mantiveram boas relações com a Rússia, apesar do conflito da Ucrânia. Putin era acusado pelos democratas de ter interferido nas eleições norte-americanas em favor de Trump. Após a eleição de Joe Biden, não à toa, a política externa dos Estados Unidos tornou-se mais dura militarmente, tanto no Índico como na Europa Central.

Bipolar

O acordo militar com a Austrália, a Índia e o Japão, recentemente assinado, tensionou as relações com a China, que nunca desistiu de recuperar sua soberania sobre Taiwan. A invasão da Ucrânia, para impedir sua entrada na Otan, aproximou a Rússia ainda mais da China. É nesse cenário que a nova “guerra fria” virou uma guerra quente, ainda localizada na Ucrânia, mas que ninguém sabe como vai acabar.

Há outros atores em cena. No século passado, a disputa pelo controle do comércio do Atlântico pela Inglaterra, uma potência marítima, e a Alemanha, uma potência continental, resultou em duas guerras mundiais. Com a União Europeia, sem gastar muito dinheiro com a Defesa, graças à expansão da Otan, a Alemanha tornou-se a principal potência econômica da Europa, aliando-se à França, para ocupar os mercados das repúblicas do Leste Europeu. Os ingleses, com o Brexit, porém, decidiram sair da União Europeia e apostar no seu protagonismo junto à Otan para manter sua hegemonia no Atlântico Norte.

Como subproduto da crise da Ucrânia, o principal projeto da Alemanha para eliminar sua dependência à energia nuclear subiu no telhado: o grande gasoduto construído pela Rússia, que estava em vias de entrar em operação e, agora, virou um mico econômico gigante. A Alemanha e a França vinham sendo protagonistas da construção de um mundo multipolar estável. Agora, esse objetivo ficou mais distante, ao ser completamente ofuscado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, de um lado, e por Rússia e China, de outro. Quem ganha com essa agressiva bipolaridade? O que interessa aos demais países é a paz e um mundo multipolar. (Correio Braziliense – 25/02/2022)

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