Luiz Carlos Azedo: Consolidação de Tebet pode sangrar candidatura de Doria

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Não está fácil a vida do governador João Doria, pré-candidato do PSDB a presidente da República. Ontem, a Executiva do Cidadania, reunida com representantes de 24 diretórios regionais, por 17 a 3 decidiu ampliar os entendimentos para a formação de uma federação partidária e montou uma comissão para conversar também com o Podemos, o MDB e o PDT. Há resistências à candidatura de Doria no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Paraná, na Bahia, na Paraíba, no Distrito Federal, em Goiás, no Pará e no Amapá, estados que admitem até não coligar e disputar as eleições com chapa própria. Simpático à aliança com Doria, o presidente do Cidadania, Roberto Freire, líder histórico da legenda, defende a federação com os tucanos na perspectiva de um projeto futuro de fusão, que seria um reencontro social-democrata. Pré-candidato à Presidência, o senador Alessandro Vieira (SE) foi escolhido para coordenar as conversas da comissão com as demais legendas.

Enquanto a federação com o Cidadania está no telhado, Doria enfrenta uma articulação dos dissidentes do PSDB com a candidata do MDB, Simone Tebet (MS). Para o senador Tasso Jereissati (CE), a emedebista pode surpreender na campanha. Tebet também conta com o apoio do senador José Aníbal (SP), outro adversário de Doria que trabalha para que os aliados do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite — que disputou com Doria e perdeu as prévias do PSDB —, venham a se engajar na candidatura de Tebet. Embora Doria tenha 2% de intenções de votos e Simone, 1%, as pesquisas de opinião mostram uma rejeição muito mais alta ao governador de São Paulo: enquanto a senadora tem 5%, o tucano registra 23%.

Tebet desconversa quanto às articulações com os dissidentes do PSDB, mas participou de uma reunião, na semana passada, na casa de Aníbal, com Tasso e Michel Temer. Na ocasião, o ex-presidente da República informou que o presidente do MDB, Baleia Rossi, já havia contratado o marqueteiro Felipe Sotello, que faz a campanha do falecido prefeito paulistano Bruno Covas, para cuidar da imagem de Tebet.

Entretanto, Doria também tem seus aliados no MDB. Em São Paulo, as duas legendas formam um só bloco político, no estado e na capital. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que assumiu o cargo com a morte do titular, sempre foi aliado do PSDB. Ex-ministro da Secretaria de Governo de Michel Temer, Carlos Marun (MDB) não esconde a simpatia por um acordo entre Tebet e Doria. O tucano tem afirmado que gostaria de uma mulher como vice.

Em contrapartida, uma ala expressiva do MDB já cristianiza a candidatura de Tebet, antes mesmo da largada da campanha eleitoral. O grupo político formado pelos senadores Renan Calheiros (AL), Eduardo Braga (AM) e Jader Barbalho (PA), e os ex-senadores Eunício de Oliveira (CE) e Romero Jucá (RR), além do ex-presidente José Sarney, é tradicional aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Já o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (TO), e o senador Fernando Bezerra (PE), ex-líder do governo no Senado, apoiam a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Até agora, porém, não há manifestações públicas contra a senadora de seus colegas de Senado.

O fator Alckmin

Ontem, Lula voltou a admitir a possibilidade de o ex-governador Geraldo Alckmin vir a ser o vice na sua chapa. Foi um “chega pra lá” nos setores do PT e aliados à esquerda que estão fazendo campanha contra o ex-tucano. O ex-presidente disse que será candidato para ganhar a eleição e “não para ser protagonista”, uma espécie de resposta à ala esquerda da legenda e aos aliados do PSol.

Enquanto nada se resolve, o nome de Alckmin permanece no noticiário político, o que não ocorreria se a aliança com Lula não estivesse em cogitação. Responsável pelo lançamento da candidatura de João Doria à prefeitura de São Paulo, no decorrer da campanha eleitoral de 2018, Alckmin foi cristianizado por Doria, que se aproximou de Bolsonaro e depois o apoiou no segundo turno. Para complicar ainda mais a relação, Doria resolveu filiar ao PSDB o vice Rodrigo Garcia, indicando-o como sucessor, o que frustrou as pretensões de Alckmin, num caso clássico de criatura que se volta contra o criador. E ainda criou um contencioso com a cúpula do antigo DEM, que se fundiu com o PSL no União Brasil.

O projeto original de Alckmin era ser candidato ao governo paulista, a convide do presidente do PSD, Gilberto Kassab, outro ex-desafeto. Entretanto, o ex-governador Márcio França, que foi vice de Alckmin, articulou uma aproximação do ex-tucano com Lula, na esperança de que ele venha a ser o vice na chapa presidencial, abrindo caminho para a candidatura de França ao Palácio dos Bandeirantes, com o apoio de Lula. Ocorre que o ex-prefeito Fernando Haddad teve a candidatura mantida pelo PT e a relação com o PSB se complicou, até porque há outros contenciosos regionais.

Diante do impasse, Alckmin permanece sem partido e seu nome está como charuto de bêbado na boca de Lula, o que é muito bom para os dois. (Correio Braziliense – 20/01/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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