O partido Cidadania sempre se preocupou com a inclusão de gênero e conquistas políticas para grupos minorizados da sociedade. A legenda foi uma das responsáveis, por meio do Núcleo Diversidade, pela equiparação do crime de racismo a homofobia. Com diversas conquistas nessa área, o partido conta com a primeira trans no curso político do RenovaBR, a militante Mari Valentim. Nessa conversa, Mari fala da importância de espaços políticos para pessoas trans, os avanços sociais no Brasil para esse público, sua história de vivência, entre outros assuntos. Confira.
Qual a importância de abrir espaço político para as pessoas trans?
Dentro de um contexto histórico é um grupo que tem conquistado espaços recentemente. Na arena pública nós temos pouquíssimas pessoas trans. Na última eleição de 2020, elegemos algumas vereadoras, mas historicamente não temos essa participação. Ainda somos minoria. A questão da transgeneridade é secular. O problema é que muitas se resumiam a guetos. O caso das travestis, por exemplo, que ficavam em espaços de prostituição e não tinham a visibilidade da sociedade. É uma luta constante dos grupos minoritários, como no caso das mulheres, negros e deficientes, e que a população trans ainda tem muito a conquistar.
Como avalia a sua participação nesse processo?
Eu vivi uma transição de gênero tardia. Percebi que não conseguiria ter uma vida plena sem estar do jeito que sempre sonhei. Voltei para a arena pública depois da transição com mais confiança. Desde então venho traçando um caminho incomum de pessoas trans na política. Eu sou neoliberal, de centro. Não estou nos partidos mais à esquerda e acho que venho tendo um papel importante por conta de trilhar esse caminho. Tentar vincular identidade de gênero e questões LGBTs a um espectro político é um erro. Então me sinto uma desbravadora. Tenho meu papel e minha importância de ocupar esses espaços de centro.
Quais são as suas pretensões políticas e a importância da inserção desse público na política brasileira?
Eu ingressei no Cidadania pela proposta do partido em se abrir para os movimentos suprapartidários e venho traçando meu caminho aqui. Antes disso já tinha uma atuação política como conselheira do Livres. Então já estava em espaços, apresentando minhas ideias, formas de pensar um mundo melhor. De propor políticas diferentes das que são tratadas nas questões LGBTs, sob uma ótica que não é muito comum no país, que é a liberal. O meu grupo pretende me lançar candidata em 2022. Gosto de dizer que essa candidatura não é minha, mas de pessoas que acreditam que eu possa ser uma representante qualificada e uma boa opção para a população.
Quais os obstáculos enfrentados por você para chegar até aqui?
Os obstáculos na vida de uma pessoa trans, como minoria, são sempre muito desafiadores. Gosto sempre de fazer uma comparação de que se uma pessoa negra sofre preconceito ou discriminação, ela consegue encontrar na família o acolhimento. A mesma coisa se uma mulher sofre ceticismo ou agressões vai encontrar no leito familiar esse apoio. No caso da comunidade LGBT, em especial as trans, essa realidade é diferente. A questão trans é polêmica e o país ainda possui uma visão muito conservadora. Se um adolescente trans assume sua transgeneridade corre o risco de não ter apoio da família. Em muitos casos isso se traduz em expulsão, agressão na escola e da família. Realmente é preciso muita vontade de quebrar e superar todos esses obstáculos. Eu falo, inclusive, que minha militância política é a minha existência, porque a transgeneridade está muito envolvida com a questão da imagem.
Você acredita que o país evoluiu na questão da tolerância da diversidade?
Se olharmos na perspectiva histórica, sim. Claro que temos um presidente que é abertamente transfóbico e extremamente reacionário. Temos também um grupo que emergiu com ele, não respeita a diversidade e acha que temos de viver um modelo de ideal familiar, de sexualidade e identidade de gênero. No caso das questões trans, conquistamos a criminalização da homofobia. Em 2018, as pessoas trans tiveram seus direitos de trocar o nome civil e o gênero na sua certidão de nascimento. A pauta trans está em debate. Falo sempre que a identidade trans traz rompimento desse vingatismo de gênero, em que homens são de um jeito e mulheres de outro, com características próprias e qualquer coisa que fuja a isso é objeto de discriminação, críticas, preconceitos. É uma mensagem muito forte de transgredir a forma.
Na sua avaliação, o que é preciso para avançarmos mais?
Estamos conquistando o que negros e mulheres têm conquistado, que chamamos de direitos jurídicos. Isso vem acontecendo, por exemplo, no “sou frágil e feminina” no caso das mulheres. A abolição da escravatura no caso dos negros. As políticas públicas voltadas paras as pessoas com deficiência. No caso das pessoas trans ainda tem muito a se avançar. Tem subemprego, muitas escolhem a prostituição por falta de opção. Muitos não possuem acesso à escola por conta da discriminação. É uma população historicamente marginalizada. O Brasil é o país que mais assassina pessoas trans por transfobia. Existem diversas formas e frentes para trabalhar essa questão, com acesso à escola, renda e trabalho. Trabalhar questões culturais em busca de uma sociedade mais aberta. O que não falta são coisas a serem feitas em busca da melhoria de qualidade da população LGBT, sobretudo a trans.
Como encara a sua seleção e participação como aluna do RenovaBR?
Um movimento que conheço desde 2018 e que sempre prezou pela qualificação de pessoas que estão na política e de candidatos. Foi uma jornada de cerca de sete meses pra chegar nessa seleção. Quase 12 mil candidatos. Desse total, 150 alunos escolhidos e eu me sinto orgulhosa porque participei sem privilégios. Mas esse número mostra a realidade da população trans. Eu fui a única aluna selecionada. Se por um lado me sinto feliz, por outro mostra o tanto que precisamos evoluir na participação de pessoas trans na política. Espero que nas próximas turmas essa representatividade aumente. O próprio RenovaBR trabalha para isso. Nessa turma temos a participação de 44% de mulheres e 36% de pretos e pardos. Quem sabe na próxima turma os LGBTs possam ser mais incluídos.
Nos fale um pouco sobre sua trajetória de vida.
Geralmente, a maioria das pessoas trans quando se descobre e se identifica é na fase de criança ou adolescente. No meu caso, essa identificação aconteceu só que não tive coragem na época. Uma questão que atrapalhou foi eu ser uma trans lésbica. Com o tempo as pessoas perceberam que existe uma separação de identidade de gênero que é o que você sente, e sexualidade que é por quem você se atrai. E nessa minha trajetória, uma namorada engravidou. Fiquei com receio de me assumir porque na época algumas amigas trans tiveram o direito negado de ver os filhos. Então eu vivi minha transição trans de forma velada e privada até os 40 anos. Pra não viver de forma infeliz resolvi enfrentar esse desafio. Hoje, oito anos depois, estou vivendo minha história de forma plena e ocupando um espaço político que desejei. Já tive muitas “primeiras vezes” na vida, e, quem sabe, me torne a primeira mulher trans deputada da história do Brasil. A vida é feita de sonhos.