Luiz Carlos Azedo: Saia justa na esquerda

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Milhares de cubanos foram às ruas, no domingo, protestar contra o governo em meio ao agravamento da pandemia e da crise econômica no país. A crise cubana pôs uma saia justa nos partidos e nas lideranças de esquerda, principalmente no ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva, amigo da liderança cubana desde quando Fidel Castro deu uma força à criação do PT, recomendando que todos os partidos de esquerda — então na ilegalidade — se somassem ao líder operário que despontava na política após as greves no ABC de 1978.

Leonel Brizola, no PDT; Miguel Arraes, no PSB; e Luís Carlos Prestes, até então no PCB, não embarcaram no partido operário criado por líderes sindicais, intelectuais e estudantes na reforma partidária de 1979. A maioria dos militantes de esquerda que havia participado da luta armada contra o regime militar, cujo grande expoente foi o líder comunista Carlos Marighela (ALN), porém, encabeçada por José Dirceu, seguiu a orientação do “Comandante”.

O livro A Ilha, do jornalista Fernando de Moraes, fez a cabeça de muita gente, em cores vibrantes: em Cuba, todos ganhavam o suficiente para sobreviver com dignidade, com políticas de educação e saúde exemplares. O sonho do “homem novo”, de Che Guevara, fazia do socialismo cubano, com seus comitês revolucionários, um contraponto ao burocrático modelo da União Soviética e do Leste Europeu. A Revolução Cubana rivalizava até com a Revolução Cultural de Mao Tse Tung, o líder chinês que deu todo poder aos jovens estudantes da Guarda Vermelha e perseguiu a velha liderança comunista, inclusive Deng Hisiao Ping, que seria reabilitado após a morte de Zhou En Lai e se tornaria o pai da modernização da China.

O presidente cubano e novo líder do Partido Comunista, Miguel Díaz-Canel, culpou os Estados Unidos pelas manifestações. Convocou apoiadores a irem às ruas “em defesa da revolução”. O apelo à mobilização partidária é um sinal de que a situação é grave: “Estamos convocando todos os revolucionários do país, todos os comunistas, para que saiam às ruas em todos os lugares onde ocorram essas provocações”, disse. O regime cubano mantém um sistema de mobilização popular no qual jovens trabalhadores e estudantes das províncias são levados para Havana, com o objetivo de participar das manifestações oficiais e, eventualmente, munidos de tacos de beisebol, pôr para correr os grupos dissidentes que realizam protestos.

Cortina mágica

Cuba sofre com o agravamento da crise econômica, foi fortemente impactada pela queda drástica do turismo durante a pandemia. O país lida com escassez de remédios, longas filas para acesso a alimentos e cortes de energia elétrica desde o fim da ajuda soviética. Ultimamente, tem recebido apoio da China. O principal aliado do regime cubano na América Latina é Nicolás Maduro, que mantém milhares de técnicos e assessores cubanos na Venezuela, mas o regime bolivariano também anda mal das pernas. A mesma coisa acontece com a Nicarágua, de Daniel Ortega. Os governos Lula e Dilma Rousseff também ajudaram muito o governo cubano, inclusive com a construção do estratégico porto de Mariel, concebido para ser uma espécie de “hub” portuário do Caribe. Mas, agora, com o presidente Jair Bolsonaro no poder, toda a colaboração econômica foi suspensa.

A crise cubana veio em péssima hora para a candidatura de Lula, pois o regime comunista cubano é um mau exemplo para qualquer candidato democrata. Cuba perdeu o charme político, mesmo que a narrativa do boicote dos Estados Unidos como causa de seus problemas econômicos ainda tenha alguma razão de ser. Não justifica, porém, o seu fracasso econômico, diante do esplendor do capitalismo de Estado chinês. Pode ser que a crise leve à aceleração das reformas econômicas, como aconteceu com a China depois do massacre estudantes da Praça da Paz Celestial. A outra possibilidade é o colapso político do regime, semelhante ao da União Soviética, que se desmilinguiu após a queda do Muro de Berlim e a vaia em Mikhail Gorbatchov, em plena Praça Vermelha, no Primeiro de Maio de 1991. Em dezembro daquele mesmo ano, a União Soviética se autodissolveu.

Só o futuro dirá o que vai acontecer, mas a crise cubana rasgou a cortina mágica que cerca a ilha, tecida por mitos revolucionários. Como diria o escritor tcheco Milan Kundera, quando o mundo corre em direção aos cubanos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. “E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que é interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta.” (Correio Braziliense – 13/07/2021)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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