Quando penso que seremos vacinados contra a Covid-19 quando a Anvisa der seu aval, tento entender o que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Seu presidente é o contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres. Ele participou sem máscara de manifestações em março, em Brasília, tirando selfies com o presidente Bolsonaro, que tocava, rindo, as pessoas. Torres cancelou recentemente “por motivos técnicos” o estudo da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”), mas depois retomou.
Torres chegou a ser cotado para substituir Mandetta como ministro. Médico formado pela Souza Marques, ele assumiu a presidência da Anvisa em novembro. Sempre foi contra “a disseminação do pânico” e a favor de “uma tranquilidade atenta” na pandemia. Era contra o isolamento social. A filosofia de Torres e Bolsonaro, vitoriosa num Ministério da Saúde com 25 militares, nos levou a uma tragédia descomunal. E, agora, a dúvidas: a Anvisa tem autonomia para aprovar as vacinas? Com urgência? O aval da Anvisa é mesmo essencial? Qual é a data de início da imunização?
Já perdemos o bonde da Pfizer até para países como o Chile e o Equador. A vacina da Pfizer foi registrada pelo FDA (a Anvisa americana). Poderia ser aprovada aqui no regime de “fast-track” (em 72 horas). Mas o Brasil não entrou na “corrida maluca” das vacinas. Por opção política, por desmazelo. Torres deve concordar com seu chefe direto, o general Pazuello, quando ele pergunta à nação em luto por mil mortes ao dia: “Pra que essa ansiedade, essa angústia?”
A chefe de gabinete de Torres na Anvisa se chama Karin Schuck Hemesath Mendes. Busco uma foto dela. Bonita, de farda. Karin é oficial do Exército “especializada em equitação e empresária do ramo imobiliário em Eldorado do Sul (RS)”. Entendeu? Também não.
Olhamos com inveja países já vacinando seus idosos. Pazuello disse, ao apresentar “o plano macro”, que “a logística é normalidade”. Captou? Também não. Ele disse que “a logística é simples” para vacinar e distribuir no Brasil. Acreditou? Também não.
O general dublê de ministro não convence ninguém. O Brasil sequer tem seringas. O primeiro lote de 330 milhões de seringas e agulhas chegaria até 31 de janeiro. O Ministério da Saúde há seis meses não responde se vai zerar o imposto para importar seringas da China. Pressa pra quê?
Diante da guerra política, os servidores da Anvisa divulgaram uma carta à sociedade. “Reafirmamos o caráter técnico e independente dos trabalhos (…) da Anvisa na proteção da saúde da população”. A Anvisa não é uma agência do governo e sim do Estado. E tem histórico internacional de excelência e rigor. “O trabalho técnico está acima de qualquer pressão”. Eles são servidores de carreira. Incansáveis.
Por tudo isso, causa estranheza a militarização da Anvisa. É mais uma tentativa de interferir e instituir a política de quartel na Saúde. Bolsonaro quis enfiar o tenente-coronel Jorge Luiz Kormann numa diretoria da Agência. Ele ia assumir a área responsável pela avaliação de vacinas! Mas a Anvisa acaba de nomear no cargo uma especialista em tecnologia farmacêutica. Ufa. Kormann não tem formação de Saúde mas está no Ministério. Ele tentou mudar o cálculo de infectados e mortes por Covid. Defendeu a cloroquina. Apoiou militantes bolsonaristas investigados pelo STF.
Bolsonaro não vai desistir de Kormann. O tenente-coronel só não entrou por não ter sido sabatinado pelo Senado. Como sabemos, o presidente quer uma Polícia Federal para chamar de sua, uma Anvisa para chamar de sua, uma Câmara, um Senado e um Supremo para chamar de seus. Parafraseando Luiz Melodia, “tente esquecer em que ano estamos”. Chegando ao finalzinho. (O Globo – 18/12/2020)