‘Minha vida é uma desgraça. É problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel.’
Quando Bolsonaro fez esse discurso, os acólitos aplaudiram. Entendi, no entanto, que estava pedindo socorro, de alguma maneira.
No mesmo discurso, disse que não podia tomar um guaraná, pois era assediado pelos urubus da imprensa. Era uma referência ao guaraná Jesus, que descreveu com uma piada machista ao tomá-lo no Maranhão.
Os sensíveis olhos e lentes da imprensa contam uma história cotidiana de Bolsonaro. E as fotos e relatos que saem de Brasília indicam que Bolsonaro está, no mínimo, descompensado.
Ultimamente, sai das solenidades correndo e olhando para o relógio. Às vezes, para para olhar o céu, cercado de segurança; outras, acena para o vazio da Esplanada. Foi visto falando no ouvido de um dragão da Independência e, quando há mulheres bonitas em solenidade, lança olhares sedutores.
Quando veio ao Rio, fez uma declaração importante: houve fraude nas eleições dos EUA, e ele sabia por fontes próprias.
Ninguém se incomodou com isso. A imprensa considerou apenas mais uma frase de Bolsonaro, o Congresso silenciou, os próprios americanos ignoraram.
Quais foram as fontes de Bolsonaro? A Abin do general Heleno descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA? Ou as fontes seriam agentes do esquema pessoal de Bolsonaro: um sargento na Filadélfia, um delegado em Las Vegas?
Bolsonaro não responde por suas palavras. Isso lhe dá uma sensação de onipotência que atenua, de certa forma, a vida desgraçada de cada dia. Às vezes, ele usa um imenso helicóptero para viajar dois quilômetros do Alvorada ao Planalto. É irracional, mas um brinquedo compensatório.
Na relação com a vacina, o mundo de Bolsonaro é muito cinzento. No mesmo dia em que declarava que não se responsabiliza pelos eventuais danos de uma vacina, anunciava-se algo diferente nos EUA: três ex-presidentes, Obama, Clinton e Bush, vão se vacinar diante das câmeras para estimular os americanos.
São atitudes opostas não apenas sobre a ciência, mas sobre a vida. Preocupa-me também a amargura de Bolsonaro, que se expressa tanto na hostilidade à natureza, na sua compulsão de destruir toda a estrutura legal de proteção ao meio ambiente.
Escrevi artigos mostrando que a destruição da Amazônia, no ritmo de agora, significa queimar dinheiro, perder inúmeras oportunidades econômicas que se abrem num mundo ambientalmente mais atento.
Começam a surgir no exterior, em núcleos militares que estudam o aquecimento global, textos que mostram que, além do desastre econômico, a destruição da Amazônia torna-se ameaça também para a segurança nacional do Brasil.
A dupla negação da Covid-19 e do aquecimento global não pode ser considerada uma reação normal num governante. Alguém dirá que isso aconteceu nos EUA com a passagem de Trump. Mas lá morreram mais de 3 mil pessoas num só dia, e há 100 mil internados. Os resultados são tenebrosos como são no Brasil, em menor escala.
Assim como a epidemia me fez reler “A peste”, de Camus, a vida desgraçada de Bolsonaro me arrasta para a peça “Calígula”, do mesmo autor.
Não há espaço nem tempo para analisar as duas trajetórias. Mas o “Calígula” de Camus, longe de fabulações vulgares, é uma excelente reflexão sobre o absurdo e o poder.
“E de que me serve ter as rédeas na mão, de que me serve meu espantoso poder, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com o que o Sol se ponha ao nascente, com que o sofrimento diminua, e os homens não morram?”
Bolsonaro é mais prosaico, não quer que o Sol se ponha ao nascente, apenas tomar um caldo de cana e comer um pastel na rua. Estamos longe do tempo dos imperadores romanos, isso não quer dizer que, numa democracia, a delicada relação entre equilíbrio mental e poder tenha sido superada.
Escrevo isso como se lançasse uma garrafa ao mar, gostaria muito que fosse apenas uma mensagem vazia, e que as suspeitas da loucura se voltassem contra mim nessa etapa crepuscular. Certamente, os estragos seriam menores. (O Globo – 07/12/2020)