No apagar das luzes do ano legislativo, houve alvoroço entre governo e deputados na votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 319/17 que aumenta os repasses da União a prefeitos via Fundo de Participação dos Municípios (FPM). O objeto da deliberação ilustra a necessidade de reajustes no pacto federativo. Mas a maneira como ela foi conduzida mostra o quanto necessidades como essa podem ser desvirtuadas em moeda de troca no jogo político, eclipsando o interesse público. Ademais, expõe a esquizofrenia do Planalto.
O debate em si é pertinente. A União é pródiga em atribuir responsabilidades aos municípios, muitas vezes sem levar em conta as condições reais para a sua satisfação. O FPM é a principal fonte de recursos para os municípios, sobretudo os menores e mais desprovidos das receitas do comércio, indústria ou agricultura.
O problema envolve a questão dos repasses, mas também outras, como a própria existência de municípios pequenos demais para se sustentar, e que talvez devessem ser unidos a outros (como propõe a PEC do Pacto Federativo); ou as perdas de arrecadação dos entes subnacionais derivadas de isenções impostas pela União (como aconteceu com a Lei Kandir); e a necessidade de cobrar dos municípios reformas que garantam a sua viabilidade fiscal.
A PEC aumenta em 1% os repasses para os municípios. Atualmente, 49% da arrecadação do Imposto de Renda e 22,5% do Imposto sobre Produtos Industrializados são direcionados às prefeituras via FPM. A proposta prevê um aumento para 23,5% em quatro fases: 0,25% nos dois primeiros anos; 0,5% no terceiro e 1% a partir do quarto ano. O projeto foi aprovado pelo Senado e em primeiro turno pela Câmara em 2019.
No dia 21, às vésperas do fim do ano parlamentar, a proposta foi incluída na pauta de votação pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A equipe econômica do governo imediatamente acusou uma “pauta-bomba”. Com efeito, apesar de ser defendida como um meio de recompor receitas dos municípios em vista da pandemia, a proposta teria efeitos permanentes, gerando um impacto de R$ 43 bilhões em 12 anos à União. De resto, como mostrou o Estado, a maioria das prefeituras herdará um caixa mais cheio em 2021, seja porque o socorro federal superou em R$ 24 bilhões as perdas de receitas e os gastos com o combate à pandemia, seja porque a arrecadação já se encontra em patamares superiores aos do ano passado.
O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, advertiu que a aprovação da PEC contribuiria para a desorganização fiscal, minando a credibilidade do País na sustentação das contas públicas. “Acaba sendo ruim para todo mundo. Isso reflete nos juros e a retomada fica prejudicada.” O líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), chegou a discutir com Maia.
Ocorre que foram parlamentares da própria base governista, encabeçados pelo deputado Júlio Cesar (PSD-PI), que pediram a inclusão da PEC na pauta. Como a proposta tem apoio do candidato do governo à presidência da Câmara, um dos líderes do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), em menos de 24 horas o Planalto deu um cavalo de pau e passou a apoiar a aprovação. O próprio Ricardo Barros sacou uma justificativa mal-ajambrada, apoiando-se no bordão “Mais Brasil e Menos Brasília”: “Não é o melhor momento, mas está no DNA liberal do governo”.
Realmente, não é o melhor momento. Mas o fato de que de um dia para o outro tenha se tornado para o Planalto o momento certo, mostra o quanto as suas decisões podem solapar o interesse público em nome dos interesses do presidente e seus aliados circunstancias do Centrão. A votação foi interrompida a 7 minutos do fim do ano parlamentar. Mas a bomba está armada. Claramente, o governo não terá pruridos em deixá-la estourar, lançando estilhaços nas contas públicas federais já fragilizadas. “Qual a posição do governo, contra ou a favor?”, indagou Rodrigo Maia. Resta claro, já prenunciando o que virá nos próximos dois anos, que quem dará a resposta será o Centrão. (O Estado de S. Paulo – 30/12/2020)