Flávia Oliveira: Memórias do cárcere

Experiências de prisão de Caetano e Luiz Justino, separadas por meio século, são pavorosamente semelhantes

Caetano Emanuel Viana Teles Veloso foi preso aos 26 anos, em fins de 1968, semanas após a publicação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), marco da fase mais dura da ditadura militar. Com o amigo da vida toda, Gilberto Passos Gil Moreira, mesma idade, também cantor e compositor, foi levado de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde ficou detido por 54 dias, a maior parte do tempo sem prestar depoimento nem ser informado do motivo da detenção. O violoncelista Luiz Carlos da Costa Justino, 23 anos, sofreu abordagem policial no Centro de Niterói, quando voltava com três amigos de uma apresentação na estação das barcas. Sem documento, foi conduzido à delegacia. Contra ele havia um mandado de prisão por assalto à mão armada, do qual nunca teve conhecimento e pelo qual fora acusado por reconhecimento fotográfico. Luiz tinha provas de que, no dia e hora do crime, estava tocando numa padaria; ainda assim, passou quatro dias encarcerado. Dois artistas da música, dois regimes políticos, duas experiências de prisão separadas por meio século. E pavorosamente semelhantes.

Caetano Veloso, ídolo da MPB, escreveu sobre os quase dois meses de prisão num capítulo de “Verdade tropical” (Companhia das Letras, 1997). Duas décadas depois, no ano da eleição que içou o deputado e capitão reformado Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, gravou com Renato Terra e Ricardo Calil, diretores de “Uma noite em 67”, o depoimento que deu em “Narciso em férias”. O documentário, produzido por Paula Lavigne, é uma obra minimalista, em que não apenas o artista, mas o homem fala e se emociona e canta, sentado numa cadeira postada diante de um paredão de concreto. Uma hora e 23 minutos de imersão nas expressões e na voz de Caetano.

Críticas já publicadas sobre “Narciso em férias” chamam atenção para o horror de um Brasil, ao mesmo tempo brutal e ridículo, que parecia ter ficado para trás com a redemocratização, mas se mostra vivo com a escalada autoritária do atual governo. Em pronunciamento no Sete de Setembro, o presidente da República atropelou a verdade com uma História oficial que não representa o Brasil contemporâneo, em que negros, indígenas, mulheres resgatam do passado o protagonismo solapado.

Caetano detalha o Brasil violento e arbitrário do regime no relato sobre a solitária em que foi confinado nos primeiros dias de prisão: um jornal velho por cama, uma latrina, um cobertor verde-oliva roto, a comida intragável, passada por uma abertura rente ao chão na porta de ferro. “Tudo era muito ruim. Era uma carne dessas que ficam com uma gordurinha entre as fibras. Eu ficava sem conseguir comer. Até que um dia um dos caras falou: ‘Tá fazendo greve de fome, vai levar porrada’. Eu disse: ‘Não tô fazendo greve de fome, eu não tô conseguindo comer’”. Andréa (Dedé) Gadelha descobriu o segundo paradeiro (um quartel do Exército na Vila Militar, subúrbio do Rio) do então marido com a ajuda do cineasta Gláuber Rocha e do cronista e dramaturgo Nélson Rodrigues. Mesmo indo ao local, os militares negavam estar com Caetano.

Luiz Justino contou ao repórter Giovanni Mourão, do “Extra”, sobre o martírio: “Estava muito nervoso, porque nunca passei por isso e nem imaginava um dia ser preso por algo que não fiz. Também não tive contato nenhum com minha família ou advogados nesse tempo todo. Senti muito medo. Em Benfica, quase vomitei porque nos serviram comida estragada”. Cinquenta e dois anos depois.

Caetano Veloso relembra no filme o dia em que, retirado da cela, foi orientado a atravessar um caminho sem olhar para trás, sob a escolta de dois homens armados. À ordem de parar, temeu pela vida: “Me mandaram entrar por uma porta, era um barbeiro. Eu tinha um cabelo grande, todo cacheado, e eles cortaram meu cabelo. Eu fiquei feliz, porque não ia morrer”. Luiz, domingo passado, relatou: “Os agentes também ameaçaram raspar meu cabelo”.

Na Vila Militar, Caetano dividiu cela com Perfeito Fortuna, produtor cultural, criador do Circo Voador, à época com 18 anos. Gil teve como companheiros o poeta Ferreira Gullar, o jornalista Paulo Francis e o escritor Antônio Callado. Esse episódio guarda o ridículo. A ditadura prendeu um homônimo do romancista, um cadeirante morador da Zona Norte; os detidos apontaram o engano. Mais tarde, após libertados, Caetano e Gil foram presos pela Aeronáutica no desembarque em Salvador, porque dois meses não foram suficiente para o Exército informar sobre o mandado cumprido em São Paulo.

A foto de Luiz Justino foi inserida num álbum de suspeitos num procedimento mal explicado pela Polícia Civil. Ao revogar a prisão, o juiz André Luiz Nicolitt indagou: “Por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria ‘desconfiança’ para constar num álbum?”. O processo segue na Justiça; a advogada Sônia Ferreira Soares lutará pela absolvição.

Caetano não sofreu tortura física, mas se recorda dos gritos. No filme, conta que ele e seus pares chegaram a duas hipóteses: presos políticos ou ladrões, contraventores, suspeitos comuns. “Essa segunda hipótese foi a que mais pareceu provável para a maioria dos meus companheiros de xadrez, o que é um negócio terrível. Não precisa assistir a ‘Tropa de elite’ (filme de José Padilha, 2007) para ver, você sabe que acontece, ouve falar. E continua acontecendo. O preso comum, de baixa renda, por quem as pessoas não têm respeito. Parece que com eles pode-se fazer o que quiser. Isso é simplesmente reafirmação da escravidão”, resumiu.

Mais da metade da população carcerária brasileira tem entre 18 a 24 anos; sete em dez não completaram o ensino fundamental; quase dois terços são negros. Trinta anos de democracia não mudaram o sistema jurídico-policial. Caetano não teve direito ao violão no cárcere, porque não completara o curso superior; formado, Gil teve. Ainda assim, compôs uma canção, “Irene ri”. Luiz só reencontrou seu violoncelo, companheiro de arte e meio de sustento, ao sair da prisão. Em “Narciso em férias”, uma frase de Rogério Duarte, designer, músico e escritor morto em 2016, lembrada por Caetano, fica a ecoar: “Quando a gente é preso, é preso para sempre”. Detenção indevida, pena permanente. Que triste este Brasil. (O Globo – 11/09/2020)

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