William Waack: Bolsonaro é o Brasil de sempre

A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.

Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.

Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.

Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.

Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.

A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.

Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.

Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.

Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é. (O Estado de S. Paulo – 13/08/2020)

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