Autores se contrapõem a artigo de professores da USP que compara bolsonarismo ao movimento integralista
Professores da área de humanas da USP apresentaram na Ilustríssima uma extensa análise do Brasil dos últimos anos, argumentando que o governo Bolsonaro “ressoa discursos e estratégias de uma velha tradição fascista local”.
Além de classificarem o bolsonarismo como uma forma de neointegralismo, sugerem a existência de uma afinidade entre fascistas e liberais, que se estabeleceu com o objetivo de mutilar os interesses das classes trabalhadoras. O governo Bolsonaro surge qualificado como um tipo de “fascismo ultraliberal”.
A análise é instigante mas, em nossa visão, equivocada. Em primeiro lugar, há o risco do anacronismo histórico, de transpor conceitos de um contexto a outro ao sabor da polêmica e dos enquadramentos políticos de hoje. Em segundo lugar, há um risco conceitual. O fascismo foi, historicamente, sob qualquer ângulo de análise, a negação absoluta da democracia liberal.
Nossos colegas fazem eco a um velho argumento usado pelos partidos comunistas contra os liberais e os líderes dos governos democráticos que existiam na Europa durante o período entre as duas guerras mundiais.
Fascistas e comunistas tinham o sonho comum de produzir revoluções populares que destruiriam o que restava da ordem liberal democrática. Uns cultivavam a crença de que a revolução traria o fim da sociedade de classes e da propriedade privada; outros aspiravam restabelecer o Estado total e um passado nacional idealizado em tabernas e cervejarias.
Ambos alimentaram ilusões do homem novo, do Estado total, da negação dos direitos individuais e da emergência revolucionária de nova ordem social orgânica e não competitiva.
Não é intelectualmente honesto argumentar que exista qualquer conjunto significativo de ideias e fatos históricos que liguem liberalismo e fascismo. Diante da fúria destrutiva da revolução bolchevique que ameaçava a Europa no pós-Primeira Guerra, Mussolini foi saudado por muitos, de Churchill ao jornal The New York Times, como alguém que “salvou a civilização europeia” de uma grande ameaça.
No Brasil, não foram apenas Plínio Salgado e sua horda de duvidosa procedência que se animaram com os avanços do fascismo na Europa. O próprio ditador Getúlio Vargas acreditava estar diante do “início tumultuoso e fecundo” de uma nova era “incompatível com o individualismo” e com os “liberalismos imprevidentes” do passado.
Para além das tensões próprias daquele momento histórico e dos erros cometidos por muitos, o fato incontestável é que o pensamento liberal foi alvo direto do fascismo, do mesmo modo como viria a ser dos regimes socialistas, no pós-guerra.
Friedrich Hayek, Karl Popper, Ludwig von Mises e Raymond Aron, alguns dos principais pensadores liberais do século, foram todos exilados pelo nazifascismo. Dedicaram a vida a pensar a ordem social a partir de uma visão complexa da liberdade humana, envolvendo suas dimensões intelectual, política e econômica. Essas ideias serviram de base para o conceito contemporâneo de sociedades abertas e seu delicado equilíbrio entre a garantia de direitos, respeito a minorias, democracia política e economia de mercado.
Sociedades abertas se definem pelo reconhecimento de que não haverá acordo entre os cidadãos nos planos da ética, da religião, da estética ou da retórica política, em sentido amplo. Visões mais restritivas —como temos em Hayek ou Milton Friedman— ou mais exigentes quanto a direitos —como em John Rawls, Dworkin ou Norberto Bobbio— expressam distintos matizes dessa ideia da grande tradição liberal.
Maior ou menor desigualdade, modelos de crescimento, tributação, proteção social e regulação ambiental são temas abertos e resultados legítimos da escolha social. A legitimidade do sistema não se define pela obtenção deste ou daquele padrão distributivo, mas pelo acordo fundamental em torno das regras do jogo e o respeito a direitos individuais invioláveis.
Sua condição de possibilidade é o reconhecimento da legitimidade do outro. O outro com o qual não concordamos e que, por vezes, julgamos ter razão para odiar. Nesse plano, a estridência retórica, a banalização de conceitos como “fascista” ou “comunista” são pouco mais do que peças de entretenimento político. O liberalismo apela à tolerância e ao debate equilibrado que a democracia brasileira requer.
É sob esse entendimento mais amplo que fazemos a primeira pergunta relevante sobre o Brasil atual e o fenômeno Bolsonaro: o que levou quase 58 milhões de brasileiros a eleger um líder que atravessou a campanha eleitoral explicitando suas simpatias pelo regime de 1964 e por personagens emblemáticos do autoritarismo e da tortura, como o coronel Brilhante Ustra?
O país dispunha, nas eleições de 2018, de um rico leque de opções no campo da esquerda, da social-democracia e do liberalismo. Diante desse quadro, optou por Bolsonaro —político de vezo autoritário e corporativista, mas cujo sucesso eleitoral é resultado da democracia brasileira.
A vitória do capitão reformado é fruto da emergência de novas forças políticas na sociedade e do exercício legítimo da alternância de poder. É nessa dimensão que ele deve ser entendido por aqueles que comungam de uma visão plural da democracia.
Bolsonaro é, antes de qualquer coisa, o resultado de um processo de polarização política da sociedade brasileira muito anterior a sua eleição. A raiz contemporânea desse fenômeno remonta à retórica violenta da esquerda à época imediatamente anterior de sua chegada ao poder, com o “Fora, FHC” e seu esforço para estigmatizar e deslegitimar um governo de clara orientação social-democrata.
Apresentada, sob o clichê da época, como “neoliberal”, a gestão FHC implementou necessárias reformas modernizadoras (fim da inflação, programa de privatizações, responsabilidade fiscal, reforma do Estado) e uma extensa agenda social.
Esta incluiu o aumento real do salário mínimo em mais de 40%, a implantação do BPC (Benefício de Prestação Continuada), a consolidação do SUS, a universalização da educação fundamental, a promoção da reforma agrária e a criação dos programas de transferência de renda que levariam ao Bolsa Família.
Após uma transição exemplar na vida republicana brasileira (tema crucial e frequentemente subestimado pelos analistas), e contando com um clima favorável no Congresso (vamos lembrar o apoio da oposição à minirreforma da Previdência de Lula), o governo petista decidiu empreender uma nova onda de polarização. Dessa vez, tratou-se de uma lógica movida a partir do próprio Estado, com seu bordão “nunca antes neste país” e a tese recorrente de que tudo recomeçara, no Brasil, a partir de 2003.
Não é foco deste artigo analisar os governos do PT, com seus méritos (em especial o ciclo reformista dos primeiros anos) e sua debacle (sobretudo o desastre econômico dos últimos anos). O ponto é a aposta em uma visão binária e excludente da política, incentivada pelo centro de poder, seus recursos de comunicação, sua rede de movimentos sociais associados ao Estado e militantes que se lançaram ao jogo da estigmatização e da divisão.
A partir do final do governo Lula, e apesar das vitórias eleitorais de 2010 e 2014, assistiu-se a uma gradativa perda de hegemonia da esquerda na vida política brasileira. Ainda está para ser feita uma análise mais abrangente desse processo. Suas razões, em parte, dizem respeito à proximidade com o poder e ao previsível desgaste. Longos ciclos de poder cobram seu preço. As ideias perdem força, a política se renova. E é bom que seja assim.
Há igualmente o impacto da revolução tecnológica na política. A emergência digital deu voz a um universo difuso de cidadãos que passaram a postular suas demandas e visões de mundo diretamente na esfera pública, sem a mediação e o filtro das tradicionais instituições intermediárias da democracia liberal (partidos, sindicatos, movimentos estudantis, mídia tradicional e, em sentido amplo, o mundo “organizado” da cultura e da academia). Em boa medida, a hegemonia da esquerda tinha como base a influência e o domínio (que ainda persistem) sobre essas instituições.
A ruptura produzida pela revolução digital colocou novos atores em campo, recodificou a linguagem da política, disseminou novas formas de organização em rede e a irrupção de movimentos de massa (como o levante de 2013), cujo impacto sobre a democracia por muito tempo serão objeto de estudo. O crescimento estridente e anárquico da nova direita, no Brasil dos últimos anos, está ligado a esse fenômeno.
Nesse processo, há contas que pesam sobre as forças de centro reformista, e elas não são poucas. A maior delas diz respeito a sua perda de identidade. O PSDB não foi fiel ao seu próprio legado de modernização e reforma do Estado que empreendeu nos anos 1990. As sucessivas derrotas eleitorais desde 2002 produziram pouca ou nenhuma reflexão crítica. Aos poucos, o partido transformou-se em um retardatário dos princípios que dizia defender e mostrou-se passivo diante da corrupção de alguns de seus mais altos dirigentes.
Já o pensamento liberal democrático, em sentido mais amplo, raramente se colocou com nitidez na arena pública. Confundiu-se com as forças tradicionais da política e terminou tragado pela onda polarizadora que, nas duas pontas, à direita e à esquerda, representam sua negação.
Em suma, perdeu o debate na sociedade e no mundo político quando da ascensão da esquerda e no momento em que esta perdia sua hegemonia. Seu espaço foi ocupado, em larga escala, pela nova direita.
Há igualmente contas que pesam sobre a esquerda brasileira, que até hoje escapam à devida reflexão pela própria esquerda. A primeira delas diz respeito a sua relação ambígua com a democracia e as instituições. Alguns exemplos: o inaceitável suporte político e financeiro, via BNDES, à ditadura castrista e à escalada autoritária na Venezuela; episódios como a “devolução” dos boxeadores cubanos e a defesa intransigente de um condenado por homicídios na Itália; a permanente retórica de “regulação da mídia” e o processo sistêmico e amplamente documentado de corrupção do Estado brasileiro.
São temas que obscurecem a relação de boa parte da esquerda com a democracia e seus valores fundamentais. Vale lembrar o recente documento, liderado pela ex-presidente do Chile Michelle Bachelet sobre os crimes do chavismo. Enquanto a líder da esquerda chilena teve a coragem moral de denunciar a ampla agressão a direitos e a autocratização venezuelana, que atitude tomou nossa esquerda?
É possível fazer de conta que nada disso é importante, que tudo é justificável à luz do “embate político” e de uma estranha lógica seletiva sobre boas e más ditaduras. Na visão dos liberais, não. A democracia não comporta esse tipo de seletividade, estejam no poder forças à esquerda ou à direita do espectro político.
Bolsonaro soube capturar tanto o sentimento difuso de rejeição da esquerda, na base da sociedade, como ocupar o espaço vazio de alternativas, em um universo político crescentemente radicalizado. Fez isso colocando-se como ponto de contato entre um conjunto relevante de tendências da vida política brasileira.
Em primeiro lugar, o pensamento conservador. Conservadorismo de costumes, em regra de base religiosa, organizado em torno da defesa de valores tradicionais da família e de uma ideia de ordem que parece retirada dos velhos manuais de moral e cívica dos anos 1970.
Ele soube também capturar uma demanda difusa pela ética na vida pública que tomou forma a partir dos sucessivos escândalos de corrupção. O selo desse alinhamento foi a presença de Sergio Moro no governo —e parte dele se perdeu com sua saída.
Seu movimento mais visível se deu no campo da política: a retórica antissistema e a recusa em compor um governo de base partidária, hoje relativizada pela (também incerta) aproximação com o centrão.
Por fim, soube estabelecer uma ampla e difusa aliança com o mercado a partir da pauta econômica formulada por Paulo Guedes e sua equipe. Guedes é um nome historicamente vinculado ao pensamento liberal no Brasil, mas sua agenda dispõe de um consenso frágil dentro do governo e seus resultados são, até agora, bastante tímidos.
O programa de privatizações não deslanchou, a reforma administrativa sequer foi enviada ao Congresso, e apenas agora o governo apresenta as primeiras ideias sobre a reforma tributária. O Executivo dispunha de espaço político, após a reforma da Previdência, para apresentar um programa robusto de reformas estruturais, mas o fez de modo tímido e inarticulado com as PECs do Plano Mais Brasil, que pouco ou nada avançaram.
O governo em praticamente nada avançou no tema da reforma do Estado, cedeu reiteradamente à pressão corporativa de militares e policiais e ainda agora fez o mesmo no debate sobre o Fundeb. Tudo isso reflete o fato de que, apesar de iniciativas e intenções liberais, o governo Bolsonaro não é, em seu conjunto, um governo liberal.
Não vai aí uma distinção trivial. O liberalismo supõe compromissos que vão muito além dos temas relativos ao livre mercado, como respeito a instituições, afirmação de direitos, cultivo de valores associados à liberdade. O atual governo anda longe disso.
Longe de uma visão liberal da educação, que deveria promover a liberdade de escolha educacional; longe de uma visão liberal da cultura, que deveria manter o Estado distante das escolhas estéticas; longe de uma visão liberal de política externa, que deveria se pautar pelo multilateralismo, abertura comercial e defesa intransigente dos direitos humanos. O que temos é um tipo difuso de populismo eletrônico feito de gestos erráticos —e nada que pareça expressar um “projeto Bolsonaro” para o país.
Conservadorismo, armas, menos radares nas rodovias, privatizações, renda básica, antiglobalismo e desejo de entrar na OCDE. Não importa quão grave, irrelevante ou contraditório seja o tema, ele poderá ingressar na agenda do governo se surgir como urgência, pressão de algum grupo de interesse próximo ao Planalto ou contribuir para mobilizar sua base digital.
Em meio a esse quadro, assistimos a uma ação robusta de nosso sistema de freios e contrapesos sobre o Executivo. É disso que é feita a democracia constitucional. É o que vem ocorrendo no Brasil.
Maior exemplo tem sido a completa inviabilização da agenda conservadora no Congresso. Exemplos recentes foram a decisão do STF de conceder a estados e municípios a prerrogativa de impor medidas de isolamento social e a recente devolução, pelo presidente do Senado, da MP que concedia ao ministro da Educação a prerrogativa de nomear reitores de instituições federais de ensino durante a pandemia.
Tem sido o governo recordista em caducidade de medidas provisórias e vetos derrubados, recorde que fez o cientista político Fernando Limongi caracterizá-lo como um tipo de “presidencialismo de desleixo”.
Dizer que as instituições funcionam não significa concordar com toda e qualquer decisão tomada, seja pelo Congresso, seja pelo STF. Ainda é cedo para um julgamento definitivo, mas é preciso prestar atenção aos desdobramentos do inquérito das fake news ora em curso, sob condução do STF, tanto no que diz respeito à forma como foi instaurado, como em sua abrangência e seu potencial risco ao princípio constitucional da liberdade de expressão.
A democracia liberal é avessa à proibição estatal do dissenso. É preocupante assistir à atuação de grupos que defendem pautas autoritárias, em diversas direções. Sua atuação reflete, antes de qualquer coisa, a permanência de cultura despótica na base da sociedade brasileira.
Esses grupos devem ser combatidos com o uso da razão e no plano da política, mas não ao preço do livre exercício da opinião. É preciso estabelecer, aqui, uma fronteira clara: a expressão de ideias, por odiosas que sejam, deve ser livre; a ação que envolva risco objetivo às instituições, porém, não é algo que a democracia possa aceitar.
O país está diante de um enorme conjunto de desafios. O maior deles é produzir um debate público sem exclusões e superar a lógica da guerra política permanente. Nossa democracia tem se mostrado mais forte e inclusiva do que boa parte das análises parece disposta a reconhecer.
O país demanda uma nova convergência reformista em torno de ideias que tragam crescimento econômico, liberdade e inclusão. O papel dos liberais e democratas é ajudar a construir essa agenda. É recusar a estridência estéril típica do mundo digital e os rótulos anacrônicos que, à esquerda e à direita, incentivam uma polarização sem nenhum futuro. (Publicado no jornal Folha de S.Paulo em 02/08/2020)
Elena Landau, economista e advogada, é presidente do conselho acadêmico do Livres
Fernando Schüler, cientista político, professor do Insper e colunista da Folha, é conselheiro acadêmico do Livres
Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e conselheiro acadêmico do Livres
Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Officy (JBFO), é doutor em economia pela USP e conselheiro acadêmico do Livres