Rubens Barbosa: Relações entre civis e militares

Seria importante comandantes das FFAA se dissociarem de atos contra as instituições

As relações entre civis e militares ao logo da História republicana nunca foram bem resolvidas. O pensamento e as atitudes de cada lado se aproximam ou se distanciam por interesses comuns ou por questões ideológicas momentâneas.

Não faltam exemplos de cada uma dessas situações, a começar da Proclamação da República, passando pelo tenentismo, pelo período Vargas, pelo movimento de 64 e, agora, com a forte presença militar num governo civil eleito democraticamente. Nos últimos 35 anos, cabe ressaltar, as Forças Armadas cumpriram exemplarmente seu papel constitucional, mas não se pode negar a ocorrência de tensões, de tempos em tempos, em grande medida por desconhecimento da sociedade civil de suas atividades, prioridades e ações.

No tocante à política interna, do lado militar ainda não foi claramente resolvida a diferença da ação política entre militares da ativa e da reserva. Do lado civil, para ficar nos tempos mais contemporâneos, desde as “vivandeiras de quartéis” até hoje, com os que pedem a intervenção das Forças Armadas e o fechamento do Congresso e do STF, prevalece a tentativa de ignorar os limites do papel dos militares na política.

Do lado militar, não está explicitada claramente a separação entre o profissionalismo das Forças Armadas como instituição do Estado, sem manifestação de apoio a partidos ou grupos políticos, e a atuação política de militares que, ao passarem para a reserva, incorporam valores civis e deixam de representar a instituição.

Do lado civil, Congresso e sociedade deveriam ter maior presença nas discussões sobre questões de interesse das Forças. A Estratégia e a Política Nacional de Defesa, que deverão ser submetidas a exame do Congresso, deveriam ser discutidas em profundidade e merecer a atenção da classe política, ao contrário de até aqui.

A ideia de um centro para o estudo das relações civis e militares, de defesa e segurança, sugerida pelo ministro Raul Jungmann e apoiada pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), viria a preencher uma lacuna com a criação de um fórum privado para exame e discussão de temas relacionados com a despolitização das Forças Armadas, fortalecimento do controle civil e papel dos militares no processo decisório do Estado brasileiro.

No atual governo surgiu uma situação diferente dos governos anteriores a partir de 1985. Superado o período de governos militares, nos últimos 30 anos podem ter surgido tensões esporádicas, mas recentemente elas se acentuaram pela participação de grande número de militares da reserva e da ativa em cargos públicos no governo federal (mais de 2.900) e pelo estímulo de setores governamentais a ataques a instituições democráticas. No início julgou-se que os militares no governo poderiam servir de anteparo e de fator de moderação de políticas extremadas com forte viés ideológico, em especial na política externa, com graves e potenciais repercussões para os interesses brasileiros. Com o passar do tempo cresceu a dubiedade de afirmações de militares ministros (“consequências gravíssimas”, “esticar a corda”, “não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder por outro Poder da República por conta de julgamentos políticos”, sempre ressaltando o respeito à Constituição) e a percepção de que as Forças Armadas estão associadas ao governo e o apoiam. Isso resultou no desgaste da instituição e na crescente rejeição de ideias antidemocráticas.

Diferentes interpretações sobre o papel das Forças Armadas, estimuladas tanto por setores civis como por militares, trouxeram a público a discussão sobre o poder moderador dos militares, à luz do artigo 142 da Constituição. O presidente do STF, Dias Toffoli, havia se manifestado no sentido de que “as FFAA sabem muito bem que o artigo 142 da Constituição não lhes confere o papel de poder moderador”. O voto do ministro Luiz Fux, ao fixar regras e limites de atuação das Forças Armadas, conforme a Constituição, tudo indica, deverá ser respaldado pelo plenário do STF. A nota assinada pelo presidente da República, pelo vice-presidente e pelo ministro da Defesa aceita essa interpretação, ao lembrar que “as FFAA destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A decisão da Suprema Corte poderá ser a pedra angular do novo relacionamento entre civis e militares.

Militares em funções políticas de ministros e altos funcionários do governo observam seguidamente que as atitudes políticas de militares com postos no governo são de lealdade e não podem ser confundidas com a postura isenta das Forças Armadas como instituições de Estado. É do vice-presidente, militar da reserva, a afirmação de que “precisa acabar essa história de que as FFAA estão metidas na política”.

Essas afirmações seriam corroboradas pelo silêncio dos comandantes das três Forças, militares profissionais em função no Ministério da Defesa. Para encerrar de vez esse capítulo seria importante que os comandantes das três Forças se manifestem publicamente, dissociando-as de demonstrações contra as instituições, caso venham a se repetir. Com isso ficaria claro o não envolvimento da instituição na política interna e seu total respeito à Constituição. (O Estado de S. Paulo – 23/06/2020)

Rubens Barbosa, embaixador com tese de mestrado sobre as relações entre civis e militares na London School of economics (1972)

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