Cristovam Buarque: 40 milhões de Floyds

O leitor certamente não entenderia se o título deste artigo fosse “o odioso rendismo”, da mesma forma que um leitor do início do século 20 não entenderia o título “odioso racismo”. A prática racista já existia há séculos, mas a palavra se consolidou a partir dos anos 1930. Até a década de 60, nos Estados Unidos, especialmente nos estados do Sul, onde crianças brancas e negras eram segregadas em escolas diferentes, bancos de ônibus e banheiros. Em toda parte havia porta de entrada separando os brancos dos negros.

Até hoje, no Brasil, segregamos em escolas diferentes as crianças conforme a renda da família. Os colégios de qualidade são negados às crianças de baixa renda, sendo oferecidos para aquelas cujas famílias podem pagar. Apesar da discriminação por renda, os dicionários não registram a palavra rendismo, porque esse tratamento não é visto como discriminação. Não é considerado resultado de preconceito odioso, é consequência de um conceito tolerado.

Felizmente, já não é mais tolerado que uma criança seja impedida de estudar em uma escola por preconceito de cor. A despeito de, no Brasil, o rendismo ser um braço do racismo devido ao fato de nossa pobreza ter pele negra, ainda é aceita como simples conceito a proibição de filhos de pobres estudarem em escolas com a mesma qualidade de crianças ricas. Porque as escolas públicas para todos são relegadas, sem a qualidade, salvo raras exceções.

Foi o ator Will Smith quem disse que “o racismo não aumentou, ele foi fotografado e divulgado”, mostrando um policial branco asfixiando um homem negro que, desesperado, sussurrava: “Eu não consigo respirar”. O vídeo mostrou a cara da perversão do racismo. Mas o rendismo escolar não tem seu filme para mostrar a tragédia, e educação de qualidade não é vista como oxigênio intelectual necessário para a sobrevivência plena neste século do conhecimento.

A população sabe que, dos 50 milhões de crianças brasileiras em idade escolar, pelo menos 40 milhões estão fora de escola de qualidade. Mas não se percebem os riscos que elas correm por falta do oxigênio intelectual que não receberão na idade certa. Não existe a percepção de que, estando fora de uma escola de qualidade, a criança está sendo asfixiada. Faltará oxigênio intelectual ao longo da vida: não saberá ler, orientar-se, ter emprego, produzir e participar da riqueza que o mundo moderno produz. Mas a asfixia educacional não atinge somente a criança, e, sim, o país inteiro, que perde em produtividade, inovação, participação e consciência plena.

Além de injusto e odioso, o perverso e também estúpido conceito de que educação de qualidade é apenas um direito para quem pode pagar, não leva em conta que ela é necessidade pessoal, como respirar e como vetor para o progresso do país. Os navios negreiros tinham marujos encarregados de não deixar que escravos saltassem ao mar, porque a morte de um deles era vista como prejuízo para o dono e toda a cadeia econômica de que ele participaria. Séculos depois, por não percebermos as consequências dessa maldade com a criança e a estupidez com o país, nós deixamos que nossas crianças saltem ao mar da desescolaridade ou fiquem no porão da educação, que é uma escola sem qualidade.

Tampouco percebemos que estamos alimentando o racismo, que nasce no atavismo da história e na desigualdade da escola, berço da exclusão dos afrodescendentes e dos pobres. A escola sem qualidade induz a preconceitos que se espalham pela sociedade. A escola será o túmulo do racismo quando a educação for oferecida a todos com a mesma qualidade e o mesmo conteúdo humanista que desfaça preconceitos e valorize a diversidade. Mas a tolerância com o rendismo escolar impede a luta para que os filhos dos pobres e dos ricos estudem em colégios com a mesma qualidade.

Contra o racismo, luta-se por cotas nas universidades, mas não se luta contra o rendismo, que impede as escolas públicas municipais terem a mesma qualidade das boas escolas privadas ou federais. Falta agora que, 100 anos depois do surgimento da palavra racismo, a palavra rendismo seja também entendida como preconceito odioso quando se referir à segregação que sofrem as crianças pobres ao serem impedidas de desenvolver seus talentos na escola e na idade ideal. (Correio Braziliense – 16/06/2020)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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