Michael Löwy: Ruy Fausto – In memoriam

Perfil intelectual e biográfico de Ruy Fausto (1935-2020).

Ruy Fausto foi, sem dúvida, um dos mais importantes intelectuais brasileiros de nossa época. Um intérprete brilhante da obra de Marx, um autêntico “marxólogo”, para usar o termo proposto por Maximilien Rubel. Sua obra mais notável é, certamente, a coleção em três volumes Marx: Lógica e Política [1]. Esse também foi o tema de sua tese de doutorado, sob a orientação de Jean Tousssaint Desanti, defendida em Paris em 1988. Uma das contribuições específicas da pesquisa foi justamente essa articulação entre a lógica dialética e a política de Marx, aspectos geralmente separados nos trabalhos sobre o autor d’O Capital.

Nessa vasta obra, cuja escrita levou décadas, ele abordou vários outros problemas filosóficos debatidos na literatura marxista: humanismo e anti-humanismo, historicismo e anti-historicismo, antropologismo e crítica ao antropologismo. Ele procurava situar-se, nessas controvérsias, numa perspectiva dialética, acima dos dualismos rígidos. O Capital, de Marx, obviamente ocupa posição central nessa reflexão, não em uma abordagem economicista, mas do ponto de vista da lógica dialética. Ao longo desse percurso, Ruy Fausto se afastará gradualmente do marxismo, mas não da dialética, que continua a inspirar sua metodologia.

Para além desse imenso trabalho “marxológico”, que não tem equivalente na literatura brasileira sobre Marx, Ruy Fausto publicou vários ensaios no Brasil nos últimos anos: trabalhos de historiografia, como O ciclo do totalitarismo (Perspectiva, 2019), e intervenções no debate político, como Caminhos da Esquerda. Elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras, 2017). Ele participou também da fundação de novas revistas políticas com universitários mais jovens: Fevereiro e, mais recentemente, Rosa. Ruy se definia como um intelectual de esquerda anti-totalitário, especialista em Marx sem ser marxista.

Algumas observações pessoais

Com a morte de Ruy Fausto, perco um amigo muito próximo: conhecíamo-nos há mais de sessenta anos. Eu o encontrei pela primeira vez em 1958, quando ele tentou me recrutar para o Partido Operário Revolucionário, o POR (trotskista), do qual ele era um dos principais líderes: ele quase conseguiu… (eu permaneci “luxemburguista”). Em 1960, ele me convidou para acompanhá-lo em um encontro com Jean-Paul Sartre, então em visita ao Brasil com Simone de Beauvoir. Conosco estava também Olavo, um operário do POR. Não me lembro mais do assunto da conversa, acho que foi a revolução da Argélia e, sem dúvida, a situação social no Brasil. Em suas memórias, Simone de Beauvoir descreve esse encontro da seguinte maneira: “Sartre recebeu a visita dos trotskistas. Eram três: a liderança, a base e a dissidência…”.

Nessa época, também nos encontramos no Seminário d’O Capital, com Fernando Henrique Cardoso e Paulo Singer. Nos quatro anos seguintes (1961-64), éramos ambos bolsistas em Paris, estudando Marx. Éramos muito próximos, víamos-nos quase todos os dias e compartilhávamos uma visão anti-stalinista do marxismo. Eu fiquei na Europa, mas Ruy retornou ao Brasil e se engajou na resistência ao regime militar. Quando a repressão se intensificou em 1969, ele foi forçado a se exilar – no Chile, como muitos outros intelectuais de esquerda brasileiros. O golpe militar de Pinochet em 1973 o surpreendeu em Santiago, forçando-o a seguir o caminho do exílio novamente, dessa vez em Paris. Ajudei-o a encontrar uma posição de professor no departamento de filosofia da Universidade de Paris 8 (Vincennes), que praticava na época uma política de acolhimento de refugiados do Chile. Infelizmente, essa universidade nunca lhe deu o devido reconhecimento, e não o promoveu a professor titular.

Continuamos a nos ver, porém com mais distância, resultado de seu afastamento do marxismo. Em 1986, foi publicado na França o seu primeiro livro importante, Marx: logique et politique. Recherches pour la reconstitution du sens de la dialectique (Publisud), com prefácio de Jean-Toussaint Desanti. Publiquei na Quinzaine Littéraire de 1º de junho de 1987 uma resenha do livro [2]. Foi uma das poucas, se não a única, publicada na França. Segue uma das passagens do meu artigo:

“O que mais se poderia dizer sobre Marx? – perguntam algumas mentes cansadas. Esquecem-se, desse modo, de que Marx (assim como Platão, Hegel e Nietzsche) é desse tipo de pensador inesgotável, que suscita, em cada época, em cada período histórico, político e cultural, novas interpretações e novas críticas ou refutações. A originalidade do livro de Fausto se manifesta em vários níveis: Primeiramente, numa postura em relação ao marxismo que recusa as soluções habituais, ou seja, tanto a defesa de uma ortodoxia quanto as falsas “superações”. Essa orientação lhe permite mostrar (sobretudo a partir dos escritos de Castoriadis) que toda crítica a O capital que não leve a sério a dialética enquanto discurso da contradição só pode fracassar, ficando aquém de Marx”.

Em 1988, fui membro da banca examinadora de sua tese, orientada por Desanti, sobre lógica e política n’O Capital de Marx. Consultando minhas anotações sobre a defesa, encontro a seguinte passagem da minha arguição: “Ruy Fausto é perseverante em seu trabalho. Ele estuda os escritos de Marx desde que eu o conheço: são trinta anos de trabalho “pressupostos” nessa tese, na qual aqueles são “negados e conservados” – aufgehoben … A primeira coisa que impressiona em sua tese é a coerência, apesar da aparente dispersão dos temas e da escrita realizada em diferentes momentos. É também um trabalho que se distingue por sua originalidade, comparado aos debates do marxismo contemporâneo: nem humanista nem anti-humanista, nem historicista nem anti-historicista… A tese combina o conhecimento erudito dos textos, o rigor lógico na demonstração e, ao mesmo tempo, uma abertura para as questões sociais e políticas mais atuais – dimensões que raramente andam juntas!”.

Também formulei, é claro, certo número de críticas: eu lhe reprovo, sobretudo, uma visão excessivamente “objetivista” da dialética, que subestima a dimensão “prático-subjetiva” e que, portanto, se inclina ao anti-historicismo… Tivemos igualmente uma pequena controvérsia a respeito da tradução do conceito hegelo-marxiano de Aufhebung: Ruy o traduziu por “supressão”, enquanto eu defendia que ele significa ao mesmo tempo supressão, conservação e elevação a um nível superior. Não consegui convencê-lo…

Nos anos 1980, Ruy reassumiu seu posto na Universidade de São Paulo e eu passei a visitar o Brasil regularmente. No entanto, raramente nos encontrávamos em São Paulo. Nossas reuniões se davam principalmente em Paris, onde ele passava parte do ano. Ele me convidou para participar da sua revista Fevereiro, mas eu não estava inteiramente de acordo com o projeto; eu estava mais próximo da revista Outubro… Nossas divergências também se relacionavam à América Latina – não compartilhava sua alergia a Cuba e a Hugo Chávez – e ao Brasil, principalmente a respeito do MST, que eu defendia de suas críticas.

Nosso último encontro aconteceu há alguns meses, quando trocamos nossos últimos livros e tivemos uma longa conversa sobre Rosa Luxemburgo – que ele admirava, mesmo com certa reserva – e sobre o bolchevismo – que ele rejeitava em bloco –, mas também sobre a crise da esquerda no Brasil, o PT e a ascensão de Bolsonaro. Eu havia gostado muito de sua polêmica com Olavo de Carvalho. Seu último e-mail, há algumas semanas, foi para me convidar para participar da revista Rosa. Respondi que iria estudar os documentos da revista, mas fiquei desapontado com o primeiro número, que não continha nada sobre… Rosa Luxemburgo.

Ruy era um intelectual brilhante, sagaz, com uma imensa cultura filosófica e política, que defendia veementemente suas ideias políticas, sua opção por uma “esquerda anti-totalitária”. Ele tinha muito humor, adorava contar piadas e anedotas. Ao mesmo tempo, tinha algo de frágil, sempre ansioso, preocupado, reclamando de ser vítima de plágio. Sua última luta, contra o bolsonarismo, mostra que não lhe faltava coragem e a força da convicção. Sentiremos sua falta… (Site A Terra é Redonda)

Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (França); autor, entre outros livros, de A teoria da revolução no jovem Marx (Boitempo).

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