A dimensão política dessa crise multidimensional se configurou no início da atual administração
O artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, sobre “Limites e responsabilidades”, publicado no último dia 14 no “Estado de S.Paulo”, vem em bom momento. Justamente quando nos encontramos em uma tempestade mais que perfeita, na qual limites constitucionais, morais, econômicos e de segurança sanitária estão sob intensa pressão. E também porque abre as portas para um diálogo de alto nível, quando uns poucos, infelizmente, fazem ouvidos moucos e se excedem em palavras loucas.
O general Mourão tem razão em apontar o caráter político da atual crise e o papel primordial que o Estado nela desempenha. Entretanto, não podemos ignorar que a dimensão política dessa crise multidimensional se desencadeou no início da atual administração, tendo contribuído para um PIB que vem marcando passo com crescimento em torno de 1% ao ano.
Com efeito, o programa de reformas econômicas foi mal conduzido, desperdiçando o período de boa vontade de que os novos mandatários costumam gozar. O governo federal não apresentou uma proposta de legislação coerente e bem definida, tampouco prioridades claras. E os negociadores do Planalto no Parlamento encontraram um campo minado devido ao empenho do presidente da República em tornar pública sua recusa a aceitar a legitimidade dos demais Poderes do Estado brasileiro.
Resulta-se daí a queda na confiança de consumidores e investidores, sobretudo estrangeiros, o que, no primeiro trimestre deste ano, levou à retração de 1,95% do Índice de Atividade Econômica (IBC-BR), considerado uma prévia da variação do PIB. Como as decisões dos consumidores e dos investidores se baseiam em expectativas que, assim como as causas, vêm antes de seus efeitos, não se pode atribuir a crise econômica à pandemia, cujos efeitos sobre a atividade econômica vieram depois. A crise política levou à crise econômica, que foi exponenciada pela crise sanitária.
O vice-presidente tem razão em destacar o papel nefasto da polarização. Ela não existe no vácuo, mas resulta de uma ação deliberada de radicalizar as diferenças entre ideias e valores na sociedade, de modo a dividi-la entre os extremos e excluir, assim, os moderados. Esse extremismo levou a um resultado incomum: no primeiro turno, os dois candidatos — Jair Bolsonaro (então PSL) e Fernando Haddad (PT) — receberam, respectivamente, votos de 33,4% e 21% dos eleitores aptos a votar. No segundo turno, o presidente foi eleito com votos de 31% de eleitores aptos, com um aumento de ausências, votos brancos e nulos. O percentual de votos nulos no segundo turno chegou a 7,4% (8,6 milhões), o maior índice desde 1989, e um aumento de 60% em relação a 2014, quando 4,6% dos votos foram anulados.
Um Executivo com esse grau de fragilidade, tanto no número de eleitores — que são os detentores originários da soberania — quanto em sua presença no Congresso, comete um erro fatal ao recusar o diálogo com os demais poderes constituídos. Sem diálogo e sem reconhecer a legitimidade dos interlocutores, não é possível convencê-los de que sua agenda é a melhor expressão do interesse da Nação. Insistindo em governar por decreto, virando as costas para os parlamentares, tratando-os com ofensas e acusações, um presidente presta um enorme desserviço, não apenas a si próprio, mas principalmente ao país.
A questão federativa está definida na Constituição brasileira, que é única e difere das demais federações. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas o fato de que são os estados que elegem o presidente, e não o voto popular direto, sugere que não devemos seguir cegamente um modelo estrangeiro. Trata-se de uma questão fundamental, que merece ser debatida, como também as relações entre os poderes. Depende apenas da disposição para o diálogo, o que é distinto da contabilidade de cargos e verbas à qual o Executivo parece estar inclinado a aderir. (O Globo – 24/05/2020)
José Serra é senador (PSDB-SP)