Luciano Huck: Mais formaturas, menos funerais

Brasil precisa de ampla coalizão para enfrentar a desigualdade

“Rezo para que minha família um dia frequente menos funerais e mais formaturas.” As palavras ditas por Douglas, um morador de São Gonçalo (RJ), me chegaram aos ouvidos com o barulho e o impacto de um tiro. O pai de Douglas morreu baleado antes que Douglas tivesse nascido; a mãe dele foi assassinada quando ele tinha 11 anos. O primo, criado como irmão, teve o mesmo destino. Como tantas crianças, ele foi forçado a sair da escola para ajudar a avó que o criou para pagar as contas da casa.

Estávamos no alto da Favela do Quarenta, parte de um complexo de favelas batizado de Coruja, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Depois de passar algumas horas com Douglas, me pareceu óbvio que ele é uma das vítimas da “loteria do CEP”. Mora em uma das cidades de maior desigualdade social, em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Estatisticamente, serão necessárias mais nove gerações antes que alguém da vizinhança de Douglas ascenda à média da classe média.

Douglas não está sozinho. Como apresentador de TV, passei as ultimas duas décadas vendo, ouvindo e compartilhando as histórias de pessoas que vivem em favelas, em regiões remotas e em outras áreas degradadas. Como cidadão ativo e empreendedor social, estive e continuo procurando maneiras de contribuir para dar oportunidades e destravar o potencial de dezenas de milhões de brasileiros em situações de pobreza.

Desde que me entendo por gente, ouço piadas de que o Brasil é o país eternamente à espera de o futuro chegar. O maior obstáculo para esse avanço é a desigualdade, herança direta do colonialismo, da escravidão e de instituições e políticas excludentes — e legado do desdém cínico de uma elite pelos mais pobres. Embora sucessivos governos desde o restabelecimento da democracia, em 1985, tenham conseguido controlar a inflação, implantar políticas sociais e até mesmo reduzir a pobreza, a desigualdade teimosamente permanece alta. Pior: dados recentes mostram que, mesmo com a melhora da economia, a desigualdade voltou a aumentar, colocando em risco os tímidos avanços das últimas três décadas.

O principal culpado é o regime regressivo de impostos e a concessão pouco criteriosa de subsídios que beneficiam, desproporcionalmente, justamente aqueles que mais têm. No Brasil, os milionários pagamos menos imposto sobre a renda e o patrimônio do que nos países democráticos mais desenvolvidos. Enquanto isso, o modelo impõe uma carga duríssima de impostos indiretos sobre os mais pobres.

Se o Brasil quer ter chances de baixar a desigualdade, precisa também de avanços drásticos na cobertura e na qualidade do sistema público de ensino básico. Os mais ricos têm o privilégio de pagar por escolas de ponta, enquanto crianças mais pobres, como o Douglas, têm acesso a um aprendizado de menor qualidade, e frequentemente têm de abortar sua vida escolar, reféns da violência e de pressões financeiras. É o que ajuda a explicar por que ainda temos 11 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que mal sabem ler ou escrever.

O Brasil precisa desesperadamente melhorar as condições de ensino de suas 200 mil escolas públicas e torná-las mais eficientes. Em vez de construir e inaugurar prédios novos, o foco deveria ser investir com mais critério, priorizando o treinamento e a promoção dos professores, ensino da primeira infância, continuidade com qualidade nos ciclos seguintes, valorização do ensino técnico e currículos antenados com o século 21. Avanços recentes no ensino, como no Ceará, Piauí e Espírito Santo, comprovam que um progresso rápido é possível.

O enfrentamento da desigualdade requer, ainda, uma rede de proteção mais ampla. Temos aproximadamente 43 milhões de brasileiros em condições de pobreza, e 13 milhões deles em situação de extrema pobreza. É o índice mais alto em sete anos. Inteligência artificial e tecnologias da informação, além de empenho administrativo, podem aperfeiçoar os serviços sociais mais velozmente e eficazmente.

Mas, para tudo isso, o país necessita de novas lideranças. Hoje, a maioria dos brasileiros se vê frustrada. Em 2013, bem antes de manifestações massivas tomarem as ruas no Chile e no Equador, o Brasil assistiu a uma de suas maiores ondas populares de protesto. A eleição presidencial de 2018, que levou ao poder Jair Bolsonaro e seu governo, revelou a extensão e a gravidade da insatisfação dos brasileiros. Com um ambiente tão polarizado, é natural que as opiniões se dividam sobre se Bolsonaro vai conseguir cumprir suas promessas de tornar o Brasil um país melhor.

Para muitos da minha geração, a política ainda é vista como um negócio sujo, a ser evitado. Mas, olhando para trás, eu agora reconheço que erramos. Todos que não se envolveram também são responsáveis por esse ambiente divisionista e desesperançoso.

A política não foi um ambiente atrativo para toda uma geração, participamos menos do que deveríamos.

Mas a minha geração e as novas não podem continuar alheias e aceitar as coisas como são. Este é o momento de o Brasil fazer um novo contrato social. O Brasil precisa de uma ampla coalizão política para enfrentar a desigualdade de oportunidades, replicando as boas experiências e as boas práticas, sejam elas da direita ou da esquerda. Principismo ideológico, irredutibilidade e aversão aos fatos não vão gerar políticas públicas eficazes para resolver os problemas mais graves e urgentes do país.

Precisamos de políticos e servidores públicos comprometidos, tecnicamente e eticamente capacitados para o trabalho. Mas a sociedade civil não pode lhes faltar. Em 2017, esses desafios me fizeram ingressar no Agora, um movimento cívico dedicado a mobilizar uma nova geração de líderes que prometeram dedicar pelo menos dois anos de sua vida ao serviço público. Logo depois ajudei a lançar o RenovaBR, uma escola apartidária para treinar potenciais líderes políticos.

Em nossa primeira convocação, atraímos 4.600 interessados que nunca tinham se envolvido com a política. Eles foram cativados pela nossa proposta de “ser o candidato em que gostariam de votar”, independentemente de matizes ideológicas. Dos mais de 120 aprovados para se candidatar, 17 foram eleitos para cargos federais e estaduais em 2018. Na abertura da segunda e mais recente turma, desta vez para as eleições municipais, recebemos mais de 31 mil inscrições.

Novas lideranças apoiadas por grupos como Agora, RenovaBR e tantos outros relevantes movimentos cívicos proporcionam uma visão positiva e inspiradora de um Brasil mais aberto e plural. Estão focados naquilo que de fato importa: gerar oportunidades, diminuir o abismo entre ricos e pobres, fazer da politica um ambiente ético e do Estado uma engrenagem mais eficiente.

Sigo torcendo e empolgado com o país. Se mirarmos a desigualdade com os instrumentos que já estão à nossa disposição, Douglas e milhões de crianças como um dia ele foi poderão frequentar mais graduações e menos funerais. (Folha de S. Paulo – 05/02/2020)

Luciano Huck é apresentador de TV e empresário

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