NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Indicado para o Oscar de melhor documentário, Democracia em vertigem, de Petra Costa, é um bom filme, tanto que está selecionado. Isso não significa que o conteúdo do filme seja neutro em relação aos fatos narrados nem quer discordar ou concordar politicamente com a narrativa da diretora seja o ponto de referência para sua avaliação como produto cinematográfico pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O filme tem uma excelente fotografia, cenas inéditas do impeachment de Dilma Rousseff e proporciona um olhar retrospectivo sobre a política brasileira, que anda muito conturbada.
O filme mostra o dia a dia da presidente Dilma Rousseff, que foi apeada do poder por causa dos seus erros e não em razão de uma suposta conspiração imperialista. Não tivesse lançado o país numa recessão profunda e se relacionado tão mal com o Congresso, o impeachment não teria ocorrido. O filme não esconde seu olhar particular sobre a política brasileira: a protagonista cresceu numa família de esquerda, que sofreu as consequências de sua opção política e ideológica durante a ditadura militar. Quando se torna adulta, a jovem acompanha o processo político da transição à democracia ao governo Lula, um ex-líder operário que chega ao poder.
Petra Costa é crítica em relação a Lula, que somente teria chegado à Presidência depois de ajustar seu discurso aos interesses das elites econômicas do país. Mostra o envolvimento do PT com a corrupção, a pretexto de se manter no poder e garantir maioria no Congresso. Com a chegada da crise econômica internacional ao Brasil, porém, o pacto perverso do PT para conciliar o apoio popular com os interesses das elites acaba se rompendo. Lula se sustentava num tripé: banqueiros e rentistas, a elite política protegida pelos grandes empresários fornecedores do Estado, e projetos sociais de natureza populista.
A partir desse diagnóstico, o filme construiu a narrativa da derrubada de Dilma Rousseff. Petra Costa injeta no documentário a paixão política que tece a trama histórica. De certa forma, entre discursos inflamados, humaniza o processo político ao se colocar como testemunha ocular da história: “Eu e a democracia brasileira temos quase a mesma idade. Eu achava que, nos nossos trinta e poucos anos, estaríamos pisando em terra firme”. O filme é muito contestado porque toma partido de Dilma Rousseff e trata seu impeachment como um golpe de Estado, o que não é verdade. Os setores que foram às ruas pedir o afastamento da petista criticam o filme desde o lançamento, com o argumento de que se trata de uma obra de ficção.
Cenário favorável
Isso é chorar o leite derramado. Nos governos petistas, houve um intenso trabalho de projeção da imagem de Lula no plano internacional, seguido da construção de uma narrativa própria sobre a destituição de Dilma, comparando-a ao golpe de 1964, que implantou o regime militar, e não ao afastamento do ex-presidente Collor de Melo, do qual o PT foi protagonista, o que inclui Lula e a própria Dilma, sendo historicamente mais correto. Essa narrativa é hegemônica na opinião pública internacional, embora não o seja em nível diplomático. Qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que o governo de Michel Temer respeitou o Congresso, a liberdade de imprensa, o direito de opinião e as minorias. Foi um governo democrático.
Ocorre que o cenário de escolha dos filmes do Oscar, no caso específico de Democracia em vertigem, tem por parâmetros a situação política dos Estados Unidos e a imagem do governo Bolsonaro no exterior, que não é em nada positiva, principalmente na ótica dos direitos humanos, das minorias, do meio ambiente e da paz. O contexto influencia as escolhas da Academia. Democracia em vertigem foi selecionado ao lado dos documentários American Factory, The cave, For Sama e Honeyland. O fato de ser uma produção da Netflix, lançado em 2019, também pesou na balança, porque foi distribuído para mais de 150 países e teve campanha publicitária nos Estados Unidos.
Com 96% de aprovação entre os críticos mais influentes, o filme é aclamado desde a estreia no Festival de Sundance, em janeiro de 2019. Chamou a atenção da crítica e da imprensa especializada pelo circuito de festivais em que foi exibido. Isso significa que o troféu está garantido? Longe disso, há fortes concorrentes, entre os quais American Factory, produzido pelo casal Barack e Michele Obama. Além disso, outro filme brasileiro concorre ao Oscar em outras duas categorias, melhor ator e melhor roteiro adaptado: Dois Papas, de Fernando Meirelles, também produzido pela Netflix. (Correio Braziliense – 14/01/2020)