Maria Cristina Fernandes – Um bote sem âncoras sob o leme do capitão

Quando o presidente Jair Bolsonaro tomou posse, porta-vozes das instituições que, em maior ou menor grau, haviam colaborado para sua ascensão, apresentaram-se como âncoras de seu mandato. Contrapunham-se ao desbocado poder presidencial para segurar, moderar e moldar o governo, condição que reduziria o titular ao papel de tutelado.

O capitão deixou correr a impressão de que se deixaria tutelar para depois desfazê-la. Começou pelos militares. Antes mesmo da posse, recebeu diploma militar que lhe havia sido negado por insubordinação. Povoou o primeiro escalão de quatro estrelas e, ao longo do ano, demitiu-os ou podou seus poderes, a começar por aqueles de seu vice. Enviou ao Congresso o projeto de reforma da carreira, maior ambição da farda, mas largou-os na tramitação e prestigiou as patentes menos aquinhoadas pelo texto.

Muitos oficiais da reserva permanecem nos cargos depois de destratados pelos filhos do presidente porque têm no complemento de soldo seu horizonte de mais longo prazo. O primeiro ano de governo não confirmou a tese de que a volta dos militares é o “novo normal” da política. As redes sociais do ex-comandante do Exército perderam eficácia e o sucessor impôs o silêncio na ordem do dia. Hoje os militares nem são próximos o suficiente para dar os rumos do governo nem distantes o bastante para dele se desvencilhar.

As pretensões do Supremo Tribunal Federal de servir de poder moderador do presidente acidental foram igualmente frustradas. A Corte acentuou suas divisões e a discricionaridade de suas decisões. Com velhos credores batendo à porta e o Ministério Público do Rio no encalço – desde a acomodação de arranjos familiares em gabinetes parlamentares ao imbróglio do assassinato da vereadora Marielle Franco -, Bolsonaro precisa manter o STF ao alcance da mão. Ao se prestar ao papel de conselheiro jurídico da algibeira palaciana, o presidente da Corte tenta estender ao Executivo a condição de posto Ipiranga dos políticos com contas a prestar.

Regido pelo tempo da política e não do direito, o Supremo falha em repetir com Bolsonaro o papel de algoz desempenhado em governos anteriores com grande bilheteria. Isso se deu, em grande parte, porque o presidente cooptou o comandante do espetáculo e seu mais dileto cabo eleitoral. Desenganado da ilusão de que continuaria a envergar a fantasia de xerife da República, o ministro Sergio Moro amargou sucessivas derrotas até ser enquadrado no papel ao qual é recomendável se acomodar, o de lugar-tenente do bolsonarismo.

No trio de âncoras das quais o capitão quer se livrar, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é a única a ser jogada ao mar por decurso de prazo. Neste ano que lhe falta, dificilmente será capaz de reverter os obstáculos que se levantam contra um quarto mandato, a começar pela Constituição. Sua condição de avalista de todos os acordos da República, do salão verde da Câmara à Av. Faria Lima, centro financeiro de São Paulo, selou também a finitude de seu mandato. Enquanto Maia estiver no cargo, Bolsonaro não se livrará da condição de governante desaforado e sem filtro. O papel já mostrou ser sucesso de público mas embute uma tutela que o incapacita para a costura da reeleição.

Ao longo do ano, o presidente aprendeu a receita para lidar com o Congresso. Saiu do Executivo a proposta que faz dos parlamentares os novos barões do Orçamento. É generoso também com a maior e mais poderosa bancada parlamentar, a do agronegócio. Pôs a maior liderança da turma no Ministério da Agricultura e, com ela, dá celeridade ímpar a pauta ambiciosa, do perdão das dívidas do Funrural ao fim da moratória da soja passando pela regularização de grileiros.

Com a sucessão de projetos enviados ao Congresso, o presidente mostrou ainda o inarredável compromisso com o qual se fez depositário do apoio da massa de investidores – da redução do custo do trabalho na economia à diminuição da capacidade regulatória do Estado. Faz valer a percepção liberal de que os contratos são regidos pela igualdade entre as partes nas reformas previstas para planos de saúde, seguradoras e financiamentos em geral.

O ministro da Economia não é uma âncora a mais. É sócio da jornada bolsonarista. Seu credo liberal tem mostrado capacidade de adaptação às intempéries, como mostrou no tabelamento dos juros do cheque especial e do diesel. Terá que renovar sua flexibilidade para prosseguir. O ano chega ao fim com a bolsa de valores em recordes sucessivos e a promessa de um Natal redentor. Paulo Guedes, porém, tem mais um ano para reproduzir a mesma bonança nos indicadores de emprego.

As rebeliões do continente acenderam um sinal de alerta. A legislatura que se inicia em 2021 se guiará pelos resultados eleitorais nos municípios e pelas perspectivas da sucessão presidencial. A sociedade entre o liberal e o ‘homem comum’ que está no poder terá de prover, ao conjunto do eleitorado, a percepção de que sua vida melhorou.

Bolsonaro foi o primeiro presidente a se eleger sem ter sido vitorioso no segmento que ganha até dois salários mínimos. Não será reconduzido, porém, sem conquistá-lo. Implantou o 13º para o Bolsa Família, liberou o FGTS e repaginou o “Mais Médicos” por um lado, mas, por outro, não deu reajuste real ao salário mínimo, ainda patina no relançamento do “Minha Casa Minha Vida” e trata como rico, vide ofensiva contra o abono, quem ganha entre um e dois salários mínimos.

É pela conquista dos mais pobres que Bolsonaro pode anular as pretensões do petismo. A soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não comprovou a decantada ameaça. De um lado, porque o presidente da República é hoje o titular de muitas das esperanças que um dia deram alento ao lulismo. De outro, porque o capitão maneja com habilidade os ventos que o elegeram e que ainda empurram seu bote: o medo que se impõe na zona cinzenta entre o tráfico e a polícia, a inércia do apoio ao governo por parte de quem dele é mais dependente e o conservadorismo nos costumes que contagia até a popularidade da ministra Damares Alves. Inalterada a rota dos ventos, é mais do que suficiente para mantê-lo acima da linha d’água. (Valor Econômico – 19/12/2019)

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