Prêmio Nobel da Paz, Denis Mukwege diz que violência contra mulher está em estado latente na sociedade

Violência contra mulher está em estado latente na sociedade, afirma Nobel da Paz

Diego Viana – Valor Econômico

Em conflitos armados, o estupro não se resume à violência sexual: é uma arma de guerra. Serve para desestruturar comunidades, subjugar populações, roubar terras, espalhar doenças. Por isso, em países como a República Democrática do Congo, vem acompanhado de outras brutalidades, como tiros ou a queima dos órgãos genitais, evisceração, espancamento.

Para o médico congolês Denis Mukwege, essa violência toda aparece durante guerras, mas, mesmo na paz, “está em estado latente em nossas sociedades”. Mukwege dedicou sua vida a tratar as vítimas desses crimes. Há 20 anos, fundou o Hospital de Panzi, na cidade de Bukavu, a 1.500 km de Kinshasa. Obstetra de formação, percebeu que só o tratamento médico não bastava para curar as pacientes. Por isso, seu hospital oferece também tratamento psicológico, assistência na reinserção socioeconômica e jurídica. São os quatro pilares do que denomina cuidados holísticos.

O médico de 64 anos dividiu o Prêmio Nobel da Paz do ano passado com a ativista curda Nadia Murad, que também milita contra a violência de gênero, tendo sido vítima do Estado Islâmico na Síria. Para o africano, esse é um sinal de que a violência de gênero está se tornando uma prioridade no mundo, o que também se revela pelo crescimento de movimentos feministas de denúncia e pelo interesse de instituições supranacionais.

Médico congolês recebeu premiação em 2018

Seu trabalho lhe rendeu homenagens, mas também riscos. Em 2012, foi vítima de um atentado, em que morreu um de seus colegas. Na ocasião, decidiu deixar seu país com a família, mas o exílio durou pouco. As mulheres de Bukavu tentaram reunir dinheiro para comprar passagens de volta para ele, sua mulher e duas filhas. “São mulheres que não têm US$ 1,00 por dia para viver”, diz. Por isso, ele retornou à cidade e, desde então, mora no hospital, onde tem escolta da ONU.

Mukwege falou ao Valor durante sua passagem pelo Brasil, onde fez uma conferência no evento Fronteiras do Pensamento. Em 2010, já havia visitado o país, falando sobre a situação do continente africano, ainda às voltas com influências estrangeiras e conflitos étnicos. Hoje, sua maior interrogação diz respeito ao relatório Mapping, de 2009, que descrevia as atrocidades da guerra civil no Congo. Dez anos depois, nenhuma de suas recomendações saiu da gaveta, enquanto crimes contra a humanidade continuam sendo cometidos.

Valor: O hospital de Panzi completa 20 anos. Como o entorno se transformou de lá para cá?

Denis Mukwege: O hospital foi criado quando o Congo estava em plena guerra, como muitos pontos da África. As circunstâncias eram tão terríveis, quando cheguei para trabalhar, que imaginei que não precisaria de um hospital muito sofisticado para fazer a diferença, com partos, cesarianas, salvando vidas. Mas logo passei a receber pacientes com ferimentos genitais graves, até mesmo por armas de fogo. Elas tinham sido brutalizadas e estavam traumatizadas. A grande mudança é que, no começo, oferecíamos cuidados cirúrgicos às mulheres que chegavam ao hospital. Hoje, desenvolvemos um método de cuidados holístico. As vítimas passam pelos quatro pilares da nossa atuação: médico, psicológico, socioeconômico e legal. Não só se curam, como se tornam promotoras da mudança nas comunidades. Vemos mulheres que chegam como vítimas e conseguem transformar seu sofrimento em poder e força.

Valor: Como o tratamento holístico foi desenvolvido?

Mukwege: No começo, quando os resultados clínicos eram satisfatórios, dávamos alta às pacientes. Mas observamos que elas não estavam só feridas fisicamente. Estavam profundamente traumatizadas. Eram estupros coletivos, estupros públicos, estupros com violência extrema, ferimentos feitos apenas para humilhar. Tratar o corpo correspondia a algo como 10% do problema. A maior parte do problema era o fato de serem humilhadas, rejeitadas, discriminadas, pelos maridos, pelas famílias, comunidades. Mas também elas mesmas, interiormente, estavam num estado de dissociação total. Seus corpos estavam separados de seus espíritos. Vimos que a melhor maneira de ajudá-las era com um tratamento psicológico que as ajudasse a retomar o controle de seus corpos. E elas respondiam muito bem. Eram mulheres que retomavam sua vontade de viver, o cuidado consigo próprias. Elas voltaram a admirar sua beleza, por exemplo. Foi uma vitória em etapas.

Valor: Os dois outros pilares ultrapassam o aspecto terapêutico. Como funcionam?

Mukwege: Mesmo se elas estavam contentes e prontas para se lançar novamente à vida, suas comunidades ainda não as aceitavam. E foi assim que surgiu o pilar socioeconômico. O objetivo é tornar as mulheres autônomas. Uma vez autônomas, elas não precisam mais ser reinseridas na sociedade, elas se reinserem sozinhas. Conseguem cuidar de suas necessidades, de seus filhos, e não precisavam mais estar sob tutela. Quando são socioeconomicamente fortes, não são mais elas que buscam as pessoas, mas as pessoas que procuram por elas, para se beneficiar de seus conhecimentos e da sua capacidade econômica. Elas superam a discriminação pelo fato de serem capazes.

Valor: Qual é o papel do pilar jurídico?

Mukwege: Percebemos que as mulheres ainda estavam reticentes a falar de seus problemas, mas, uma vez que reconquistam a autonomia e voltam à sociedade, exigem que a justiça seja feita. É um ganho de dignidade, que se faz por meio da Justiça. Elas voltavam para pedir que o hospital as acompanhasse aos tribunais. O tratamento holístico permite à pessoa voltar a aproveitar a vida, ao exercer todas as suas funções, podendo defender seu lugar na sociedade. Vejo isso em muitas mulheres que já tratamos e sou muito orgulhoso de vê-las lutando.

Valor: Muitas vítimas não ousam recorrer à Justiça. Como superar essas barreiras?

Mukwege: Para entrar no caminho dos processos judiciais, há condições físicas, psicológicas, sociais e econômicas em jogo. Para que as vítimas se sintam encorajadas a recorrer à Justiça, um caminho longo e sofrido, elas precisam sentir que é efetivo. Mas muitas vezes os processos não resultam em reparações, mesmo quando elas ganham. Precisamos rever nossos sistemas judiciais, com todos os mecanismos da Justiça, que são muito pesados para as vítimas.

Valor: O que sua experiência no Congo tem a ensinar sobre a violência de gênero em países que não estão em guerra, como o Brasil?

Mukwege: O que vemos em períodos de conflitos é algo que as sociedades vivem de maneira latente em países como o Brasil, mas mesmo na Europa e nos EUA. Na União Europeia, a cada três dias uma mulher é morta. Na maior parte dos casos, por seus parceiros. É violência doméstica. Temos que entender que a violência sexual está ao nosso lado, dentro das nossas casas. Quando a olhamos pelo lado da vergonha e silenciamos, o que fazemos é proteger o agressor. Ele continua a fazer o mal à sua volta, porque ninguém ousa denunciar, de medo de envergonhar sua família. Mas devemos ter medo de envergonhar a família ou devemos salvar as vítimas? Elas estão sob o controle dos carrascos, que podem estuprá-las quando quiserem, porque as pessoas sentem que têm que silenciar. O silêncio é uma grande arma dos estupradores.

Valor: O senhor tem promovido a ideia de um fundo global de reparação. De que se trata?

Mukwege: A partir do nosso trabalho, surgiu um movimento global, com diversos países-membros, e é por meio desse movimento que tentamos criar um fundo global dos sobreviventes. Primeiro, para ajudar as vítimas a reconstruir suas vidas. Em seguida, para ajudar os países que queiram fazer reparações, mas que não são capazes, por falta de meios financeiros. Outro caso é o das sobreviventes em países cujos governos não queiram fazer reparações. Há muitos países nessa situação, que preferem fechar os olhos para o que acontece em seus territórios. A ideia do fundo é que não seja deixada uma só mulher pelo caminho.

Valor: Como o Prêmio Nobel recebido no ano passado afeta seu trabalho?

Mukwege: O primeiro efeito é que ele dá uma visibilidade para a luta contra a violência de gênero, principalmente em períodos de conflito. Tanto é que ele foi dado não só a mim, mas também a Nadia Murad. Ambos atuamos em zonas de conflito. Esperamos que o prêmio incentive uma mobilização mais forte. Apresentamos ao G7 um conjunto de propostas de lei, para que os líderes desses países se engajem um pouco mais na luta pela igualdade de gênero. A desigualdade que persiste nas nossas sociedades colabora para o quadro de violência sexual.

Valor: Como são essas leis?

Mukwege: Examinamos quais leis são as melhores em diferentes países, e escolhemos 79 como exemplares. Fazemos recomendações para abolir leis discriminatórias contra mulheres. Propomos financiar organizações feministas, para ajudá-las em seu trabalho. Também pedimos medidas contra o assédio on-line. Muitas jovens são tão assediadas que acabam tendo consequências mais graves. Em muitos países também há mutilação genital feminina. É tempo de questionar vários estereótipos e normas sexistas que favoreceram violências terríveis, além de promover a participação de mulheres em todos os setores da sociedade.

Valor: Desde que o senhor fundou o hospital, o tema ganhou importância?

Mukwege: Estou nessa luta há mais de 20 anos. Sinceramente, hoje temos uma oportunidade sem precedentes. Se alguém dissesse que essa seria uma questão prioritária para o G7, ninguém teria acreditado. Temos que aproveitar o momento para levar essas questões ao nível daqueles que realmente decidem. Não vamos vencer os desafios atuais, seja a luta contra a pobreza, sejam os desafios migratórios ou a mudança climática, se 50% da população não está incluída na luta.

Valor: O senhor é filho de um pastor e escolheu a medicina depois de acompanhar o pai no atendimento a uma criança moribunda. Como é sua relação com a espiritualidade hoje?

Mukwege: Minha fé me leva a crer que não podemos avançar se não vemos o outro como nós mesmos. Ame o próximo como a si próprio. Esse é meu leitmotiv. Minha felicidade é a felicidade do outro. Quando vejo o outro sofrendo, posso ter compaixão, sofrer junto com essa pessoa. E isso vem da minha fé. Nossa sociedade se tornou materialista e o lado espiritual está abandonado, mas vemos cada vez mais que viramos prisioneiros do nosso próprio sistema. Se o ser humano existe, é para o outro, não só para si mesmo. Esse egoísmo fez com que hoje, apesar da abundância que existe no planeta, continuemos a acumular, destruindo as condições da coexistência entre seres humanos e a natureza. É preciso ser espiritual, e essa espiritualidade se funda no amor ao próximo. Não sou religioso. O sectarismo das religiões também nos destrói. A espiritualidade é muito mais interior.

Valor: No mês passado, o líder guerrilheiro Bosco Ntaganda foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional. Como avalia essa sentença?

Mukwege: Temos que felicitar o TPI, que, pela primeira vez, deu a devida atenção a crimes sexuais. Ntaganda foi condenado apenas por crimes em Ituri, na região dos Grandes Lagos. É preciso começar em algum lugar, então felicito a corte, mas espero que ela tenha a coragem de ir adiante, e que os países também ousem dar as condições para que o tribunal faça seu trabalho corretamente. E que as pessoas responsáveis pelas violências sexuais e os crimes contra a humanidade respondam por seus atos. A esperança das vítimas e seus parentes é que Ntaganda não seja um caso isolado. É preciso que muitos outros líderes que comandaram atos de barbárie, dos quais muitas mulheres foram vítimas, respondam por seus atos. A segunda coisa é que, uma vez condenado, a esperança é que as vítimas possam finalmente receber uma reparação.

Valor: Depois do relatório Mapping e da intervenção da Organização das Nações Unidas, a situação no Congo está melhor?

Mukwege: São mais de 20 anos nesse conflito que deixou mais de 6 milhões de mortos. Fala-se de 4 milhões de deslocados internos, centenas de milhares de mulheres estupradas. A ONU fez o relatório Mapping, que explicitou mais de 617 crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Esse relatório não teve resultados. Nenhuma de suas recomendações foi posta em prática. Isso põe em risco o próprio direito humanitário internacional. Por que essas recomendações continuam numa gaveta, em vez de serem usadas para parar com os massacres? O mundo gasta centenas de milhões, talvez bilhões, de dólares na África. Temos talvez o principal contingente da ONU, mas essas forças não podem cumprir sua missão corretamente se do outro lado os antigos chefes rebeldes continuam a agir e foram integrados ao Exército e ao Estado.

Valor: Em 2010, o senhor esteve no Brasil para falar sobre a África. Desde então, o continente tem crescido, com forte influência chinesa. Como avalia a África hoje, quase uma década depois?

Mukwege: Os problemas persistem, são de muito longo prazo. Por exemplo, esse crescimento não beneficia a população africana. Ainda não havia tanta influência chinesa em 2010. Hoje, ela está cada vez mais forte. Mas não é de modo algum uma cooperação, é claramente neocolonial. É uma pena que a África não consiga sair dessas garras neocoloniais. Sofro vendo os africanos que precisam atravessar o Mediterrâneo para tentar o exílio na Europa, porque o que se explora na África é feito de maneira selvagem e brutal. Resta muito a fazer no continente para autonomizá-lo. (Valor Econômico – 30/08/2019)

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